Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

América Latina e a expansão do sistema agroalimentar corporativo

Região é central para expansão agroalimentar corporativa mundial, com todas as consequências produtivas, ambientais e sociais que isso acarreta

Responsável por 75% do comércio mundial de alimentos, o sistema agroalimentar corporativo utiliza tecnologias como os alimentos geneticamente modificados. Na foto, grupo observa plantação de milho transgênico no Quênia
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Por Olympio Barbanti Jr.

Embora a agricultura não seja tradicionalmente um tema central nas relações internacionais, a expansão da importância relativa do agronegócio nas economias dos estados latino-americanos, e as diversas interfaces que o tema da agricultura possui com o processo de desenvolvimento, fazem com que o setor adquira centralidade nas agendas econômicas, sociais, ambientais e até mesmo de segurança internacional.

Esse artigo explora brevemente essas conexões para o futuro próximo, com ênfase nos países onde a expansão ou intensificação da agricultura tem maiores possibilidades: Brasil, Argentina Uruguai e Paraguai.

O chamado superciclo das commodities (agrícolas e minerais), cujo período central foi entre os anos 2003 e 2010, beneficiou o crescimento da agricultura na maior parte da América Latina, em especial nos países nos quais o modelo de agricultura do agronegócio capitalista encontrou melhores possibilidades de desenvolvimento, em especial pela abundância de terras planas, sol e água.

A agricultura é um termo mais amplo, e refere-se a todas as técnicas utilizadas para a preparação do solo, destinando-o à produção de vegetais, ou à criação de animais. Pode ser em larga escala, ou de subsistência.

O agronegócio, na formulação clássica de Davis e Goldberg, é a “soma de todas as operações envolvidas na fabricação e distribuição de suprimentos agrícolas, operação de produção na fazenda, e para o armazenamento, processamento e distribuição de commodities agrícolas e itens feitos a partir deles.”

Envolve, portanto a, a agroindustrialização e todas as etapas da cadeia, da semente à prateleira do supermercado.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a agroindústria tem sido objeto de investimentos bilionários de grandes empresas multinacionais em todas as etapas da cadeia, constituindo o que se chama de sistema agroalimentar corporativo.

Por meio do controle de insumos e mercados, ele reduziu enormemente a quantidade de itens consumidos nas dietas dos mais diversos países àqueles produtos vegetais e animais de mais fácil industrialização e distribuição.

O sistema agroalimentar corporativo, crescentemente baseado no uso intensivo de maquinário, agrotóxicos, tecnologias de ponta (como a transgênese), logística, e informatização é hoje responsável por cerca de 75% do comércio mundial de alimentos.

Tais tecnologias garantiram um enorme aumento da produção, mas trouxeram consigo a concentração de propriedade da terra e de renda, o uso intensivo dos recursos naturais, perda dos padrões culturais de alimentação, e, mais importante, destruição da capacidade de produção agrícola em diversos países e dependência dos mesmos a mercados internacionais para o abastecimento doméstico com eliminação do campesinato e da agricultura familiar.

O que para diversos analistas trata-se de um problema de mercados internos, para as Relações Internacionais configura-se no questionamento dos limites pelos quais esse modelo pode configurar-se em uma ameaça à soberania.

Esse termo tem sido utilizado pela Via Campesina, e pelo MST, desde 1996, para significar o direito de cada nação a manter e desenvolver os seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural e produtiva. Muitos autores preferem fazer referência a tal direito como uma questão de segurança alimentar, e não de soberania.

No entanto, é reconhecido que a o controle sobre as diversas dimensões da segurança alimentar pode representar um problema à soberania, inclusive pela possibilidade de um país perder a capacidade de garantir a alimentação de seu povo.

A população da Terra é de cerca de sete bilhões de pessoas, e aumenta em cerca de 83 milhões de habitantes por ano. Até 2050 deve haver mais três bilhões de pessoas, chegando a população mundial a nove bilhões.

Alimentar essa população é um desafio que coloca frente à frente os defensores do sistema agroalimentar corporativo, e da agroecologia, para quem a alimentação é um direito humano, e os alimentos não deveriam ser tratados como simples mercadorias.

Enquanto novos experimentos em produção agroecológica de larga escala procuram demonstrar que essa técnica, se não garante excedentes exportáveis pode, ao menos, garantir a alimentação nacional, o modelo do agronegócio prevalece e ganha importância na balança comercial frente às dificuldades de competição das indústrias latino-americanas no contexto da globalização.

A agricultura representa cerca de 23% das exportações da América Latina e 5% do produto doméstico bruto da região, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em termos mundiais, a América Latina representa cerca de 16% das exportações mundiais de produtos agrícolas e de alimentos, conforme dados do Rabobank.

Mas a produção agrícola na região possui enorme variação, indo da subsistência ao agronegócio sofisticado. Hoje, cerca de 50% da produção de alimentos da América Latina vêm de seus 14 milhões de pequenos agricultores. Enquanto para muitos isso significa a importância da pequena produção, para investidores capitalistas significa um mercado – e terras – a conquistar.

Nesse cenário, alguns desafios que se colocam para Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (BAPU) podem ser destacados: 

Água

A agricultura utiliza cerca de 70% das águas doces disponíveis para consumo. Um estudo recente estima que a AL possui 363 milhões de hectares nos quais é possível fazer agricultura baseada em chuvas – a segunda maior área do planeta nessas condições, e possui a maior dotação do mundo em recursos hídricos renováveis (13.500 km3) e terras aráveis.

Produtividade

Cerca de 90% da agricultura na AL depende de chuvas, o que representa um enorme potencial para aumento de produção por meio de sistemas de irrigação que, no entanto, utilizam mais água e demandam mais do solo.

Mudanças climáticas

Vão impactar a região de forma moderada, porém uma estimativa recente aponta que as exportações agrícolas da AL devem ser reduzidas em cerca de US$50 bilhões anuais, por volta de 2050.

No balanço entre potenciais produtivos e mudanças climáticas, os países do BAPU representam um enorme atrativo para o capital internacional que deseja controlar terras agrícolas férteis – e quem produz alimentos detém água. Os interesses estrangeiros sobre terras no BAPU são enormes.

Em 2007 estimava-se que cerca de 10% das melhores terras na Argentina já estavam em mães de estrangeiros. No Brasil, cresce o debate sobre o projeto de lei 4059, de 2012, que facilita a compra de terras por estrangeiros. Faltam dados sobre Paraguai e Uruguai.

A chamada “estrangeirização de terras” prevista no PL 4059/12 tem sido defendida pelo Ministério da Agricultura. O Ministério das Relações Exteriores limita-se a reconhecer que o investidor estrangeiro será tratado na mesma condição do investidor nacional.

Para o Ministério da Defesa, no entanto, o Brasil irá perder a prerrogativa de monitoramento e controle sobre aquisições indiretas de terras por estrangeiros, além do fato de que o projeto de lei prevê regularizar todas as compras de terras já realizadas até o momento por empresas ou cidadãos estrangeiros no país.

Nesse cenário, a América Latina é agora a “bola da vez” para a expansão do sistema agroalimentar corporativo no mundo, com todas as consequências produtivas, ambientais e sociais que isso irá acarretar.

* Olympio Barbanti Jr. é professor-adjunto do curso de Relações Internacionais da UFABC e convidado do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI

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