Política

O paradoxo da defesa da democracia

Muitos dos que advogam pelo golpe são os que sempre estiveram representados nas instâncias de poder

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“Fora PT”, gritaram os deputados durante a aprovação do relatório favorável ao impeachment em comissão especial da Câmara Federal. “Não importa que Temer e Cunha sejam corruptos. Saindo o PT está ótimo”, disse-me o médico durante uma consulta essa semana. “Mas a questão é que essa mulher é muito ruim de governo”, comentou um familiar.

Ao fim e ao cabo, parece que o sentimento que levou milhões de pessoas às ruas de verde e amarelo finalmente passou por um processo de decantação e o que sobrou no fundo era o que estava evidente desde o começo: que se trata da retirada, por quaisquer meios necessários, do PT do poder. A eleição de 2014 nunca acabou.

O argumento do estelionato eleitoral na área econômica e que embasa o pedido de impeachment, no entanto, não tem saído da boca de quem apertou 13 nas urnas e se sentiu traído, mas sim, em sua maioria, de quem digitou 45. Nas manifestações com camisetas da Confederação Brasileira de Futebol não se vê os movimentos sem-teto, sem-terra, sindical, estudantil, de mulheres comentando a alta da tarifa de eletricidade.

Logo esses grupos, que foram os mais atingidos pela política econômica de Lula e Dilma, que lutaram contra a retirada dos direitos trabalhistas e contra o ajuste fiscal, contra a construção de Belo Monte e a violação dos indígenas e que questionaram a não realização da reforma agrária, entre tantas outras medidas vexatórias tomadas pelo PT na vontade de contentar os de cima.

Esses movimentos estão do outro lado do muro, literalmente, convocando as passeatas em defesa da democracia. Sim, essas pessoas, que nunca estiveram plenamente incluídas nela. Essas pessoas que ficam presas por estarem com um Pinho Sol nas mãos e tomam bomba de gás quando reivindicam a melhoria da escola pública.

Que paradoxo é esse que vivemos então, em que aqueles que advogam pelo golpe são os que sempre estiveram representados nas instâncias de poder, inclusive durante os governos petistas, e os que estão defendendo a democracia são os que nunca estiveram plenamente integrados nela?

Os de cima não precisam da democracia para governar. Eles se legitimam de muitas outras maneiras, inclusive maquiando explicitamente o funcionamento do sistema. Basta olhar a hipócrita comissão especial do impeachment para ter perceber isso: uma maioria de homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, das classes abastadas, acusados de corrupção, defendendo a queda do governo sob falsos argumentos.

E em conluio com um presidente da Câmara dos Deputados que, apesar de investigado por desvio de milhões ao exterior, permanece intocável no seu comando, com o amplo apoio dos meios de comunicação de massas e do empresariado.

É aos que estão embaixo que interessa a pluralidade, a possibilidade do debate aberto e da disputa franca de ideias, inclusive sobre a própria concepção de democracia, que sabemos ser hoje tão limitada. Não devemos, como disse Rosa Luxemburgo, nos contentar com a casca da democracia, mas sim conquistar o poder político e enchê-la com um novo conteúdo social.

O aprofundamento do autoritarismo institucional e o fascismo maniqueísta das ruas só dificultarão ainda mais esse processo, já tão combalido pela experiência de transformação em um partido da ordem pelo PT.

Não vai ter golpe, vai ter luta.

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