Sororidade em Pauta
Os paralelos da vida burguesa com a vida no campo dos refugiados
Segue até o porto mais próximo, deixa tudo para trás, não escolhe o destino
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No alívio do ar quente do seu carro sedan
A caminho do mercado depois do trabalho
Pensa no jantar, no amanhã, no depois
Obrigada a trocar a cerveja gelada pelo vinho
Depois de uma semana exaustiva que lhe sequestrou a voz
Sente o ar gelado no rosto ao caminhar até o estacionamento
E planeja o próximo verão
No aperto da cela dividida com quarenta e três num espaço mal planejado para oito
A caminho da privada entupida, tropeçando em corpos amontoados
Lembra dos seus filhos, da sua mãe, do seu cachorro
Obrigado a comer o pão que o diabo amassou
Depois do erro arrependido que lhe tomou tudo
Sente o odor de mijo, de fezes, de sangue, de suor e de ódio
E se esforça para lembrar o cheiro do ar
No conforto da sua cama queen e do moletom extralargo de Harvard
Pega outra coberta porque essa noite vai gear, ela ouviu dizer
Brinca que parece um mendigo, usando camadas desconformes de roupas
Enfrenta o frio de dentro de casa, esfrega as mãos, esquenta a sopa, fecha a janela, acende a vela
Abre o livro novo, escolhido dentre vários livros novos ainda não lidos
Rejeita o convite para jantar fondue porque enjoou de queijo
Reclama dos pés que se recusam a esquentar
Na dureza do espaço ocupado por uma caixa de papelão desmontada
Não sabia que ia gear porque ninguém fala com ele
Brinca com o gato que não sabe que ele é mendigo, invisível, inexistente, vestido dele mesmo
Enfrenta o frio da sua casa na rua, se enrola em tudo o que encontra, acende um cigarro achado no chão
Tenta em vão conversar com quem passa por ali, quer contar a sua história, falar amenidades
Odeia camarão, mas aceita o resto de comida porque se recusar a madame se ofende
Agradece em silêncio pelo par de meias furadas encontradas na sarjeta
Perdida na imensidão do shopping, sofre para encontrar o melhor biquíni para o seu corpo curvilíneo
Não sabe lidar com os quilos que ganhou e que lhe consomem a alma
Já perdeu as contas das vezes em que odiou seu próprio corpo
Escolhe o destino, compra as passagens, faz as malas, tira férias
Embarca tranquila com outros turistas encantados com as belezas naturais
Segura o chapéu improvisado enquanto tira a foto dentro do barco
De uma ilha para outra, do mar verde para o oceano azul, acha que é especial
Seus cabelos vermelhos brilham nas águas do mar adriático
Esquece todos os seus problemas, flutua no meio do nada, aproveita o silêncio
Perdido entre os destroços do último bombardeio aéreo, esfrega os olhos para reencontrar a visão
Não vê sua família ou amigos, apenas corpos cobertos de fuligem e partes desprendidas de seus todos
Já perdeu as contas dos ataques químicos das últimas semanas
Segue até o porto mais próximo, deixa tudo para trás, não escolhe o destino
Embarca desolado no primeiro barco disponível, empilhado com mais corpos do que esperança
Segura a criança que quase caiu durante a tempestade enquanto a mãe morria sufocada
De vômito em vômito, de morte em morte, tudo o que queria era ser normal
Nem as águas cristalinas do mar mediterrâneo conseguem limpar suas mãos sujas de sangue
Quer esquecer tudo o que viu, mas não consegue, não pode
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Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
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