Cultura
A máfia segundo Marco Bellocchio
‘O Traidor’, dirigido pelo prestigiado cineasta italiano e coproduzido pelo Brasil, estreia no País após três anos de espera
Em uma das sequências mais intensas da parte brasileira de O Traidor, de Marco Bellocchio, o mafioso Tommaso Buscetta, vivido pelo ator Pierfrancesco Favino, volta-se para um dos 40 policiais que invadiram sua casa para prendê-lo e diz, irritado: “Buscetta (com o “s” e “c” formando o som de tche). Não Busqueta. Meu nome é Tommaso Buscetta. Aprenda a falar direito”.
A ironia inserida no roteiro escrito por Bellocchio em parceria com quatro colaboradores é um pequeno detalhe da presença brasileira não só na vida de Buscetta, mas no filme que, em 2019, concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes.
O Traidor, 26º longa-metragem de ficção do diretor italiano que estreou no cinema no início dos anos 1960 e manteve, desde então, uma carreira sólida, teve o Brasil como um dos países coprodutores. É que para contar a história do famoso líder da Cosa Nostra era incontornável a passagem por aqui.
Foi, afinal de contas, no Brasil que o mafioso, no início dos anos 1980, refugiou-se, casou-se e foi novamente preso. Ao ser extraditado para a Itália, em 1983, ele passa a colaborar com os juízes Giovanni Falcone e Vincenzo Geraci e delata os antigos companheiros de máfia.
O episódio que, à época, tomou as transmissões das tevês brasileira e italiana foi reconstituído por Bellocchio com as benesses da pátina do tempo e das potencialidades da ficção.
Além de concorrer à Palma de Ouro, o filme foi indicado ao César, principal prêmio do cinema francês, ao Globo de Ouro e a todos os prêmios do cinema italiano. Foi, ainda, um sucesso de público na Itália e teve lançamentos importantes nos mercados europeu e norte-americano. Tudo isso, em 2019.
Superprodução. O filme foi rodado também em Palermo, cidade em que aconteceu o julgamento real, e na Alemanha, onde foram filmadas várias cenas de estúdio – Imagem: Lia Pasqualino
No Brasil, o filme estreia apenas nesta quinta-feira 14. “Aqui, o filme sofreu com a paralisação de todo o sistema da política pública voltada ao cinema e, ainda, com a pandemia”, explica Fabiano Gullane, um dos irmãos fundadores da Gullane Entretenimento, coprodutora do filme.
O padrinho do encontro entre a Gullane e a Kavac Film, fundada por Bellocchio e hoje comandada por Simone Gattoni, foi Marco Müller, diretor do Festival de Veneza. Ao saber que Simone buscava parceiros no Brasil, Müller indicou a empresa paulistana que já teve produções exibidas nos principais festivais de cinema do mundo – Cannes, Veneza, Berlim e Sundance, entre eles.
Embora a experiência internacional da Gullane seja considerável, a empreitada com Bellocchio foi uma aventura. Para seguir tudo de perto, foi chamado, como produtor delegado, André Ristum, diretor de Meu País (2011) e A Voz do Silêncio (2018), que passou a infância e a adolescência na Itália. O primeiro set no qual Ristum pisara, com um cargo, foi o de Beleza Roubada (1996), de Bernardo Bertolucci. Ele figurou então como assistente de produção.
O primeiro encontro de Ristum com Bellocchio deu-se em Roma, em 2018. Uma de suas incumbências, na volta ao Brasil, era encontrar a atriz brasileira a quem caberia o papel de Cristina, mulher do mafioso. Ristum fez vários testes e, dentre eles, o cineasta italiano deteve-se sobre uns oito.
No fim, escolheu Maria Fernanda Cândido, atriz revelada na novela Terra Nostra (1999). Depois do trabalho com Bellocchio, ela já participou de outra produção italiana, Bastardi a Mano Armata (2021), de Gabriele Albanesi, de Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore (2022), e de um filme francês ainda em pós-produção.
O encontro seguinte de Ristum com o cineasta se daria na Sicília, já na fase de preparação das filmagens. “Eu ficava por ali e, de repente, o Bellocchio pegava no meu braço e dizia ter tido uma ideia”, relata Ristum. “Ele é vulcânico na forma de se comunicar e ter ideias.”
Todas as manhãs, no Rio, Bellocchio aparecia com o storyboard refeito e com novas ideias
Esse temperamento significava, no dia a dia, mudanças de última hora e pedidos que deixavam os produtores de cabelos em pé. Quando o diretor chegava com novas ideias e os produtores brasileiros se mostravam apreensivos com o orçamento, ouviam do produtor italiano: “O Marco é assim”.
“Aqui no Brasil, acho que não tivemos uma só diária em que ele, ao amanhecer, não nos apresentasse o storyboard redesenhado”, relata o produtor delegado, rindo. Sim, porque Bellocchio desenha no papel todas as cenas, completando-as com os diálogos.
Ristum recorda-se, ainda com certo deslumbramento, do dia em que chegou com a equipe internacional do filme ao tribunal de Palermo, onde aconteceu o julgamento real e onde as salas mantêm a blindagem contra bombardeios. “Lembro de, nesse dia, ver Bellocchio ali parado, olhando tudo, como se estivesse mesmo criando o filme na cabeça dele”, relata.
Encerradas as filmagens na Itália, a equipe foi para a Alemanha, onde foram gravadas várias cenas de estúdio e, então, seguiu para o Rio de Janeiro. Vieram para cá, para duas semanas de filmagens, cerca de 20 integrantes da equipe italiana. A ela se juntaram mais uns 50 brasileiros. Além de Maria Fernanda, havia alguns outros atores com falas, uma ampla figuração e técnicos.
“O maior desafio foi filmar a cena em que eles relatam terem sido torturados física e psicologicamente”, diz Ristum. “Eles foram levados em helicópteros e ficaram pendurados nas aeronaves. A gente teve que reconstruir isso com helicópteros de época, que foram filmados suspensos, em um fundo croma key (a ser, na finalização, substituído pelo mar), com ventiladores enormes…”
Gullane define a empreitada com um trabalho a oito mãos, liderado pela Kavac. “Cada coprodutor é responsável por levantar os recursos da sua parte e, depois, ficamos também com os direitos sobre o filme nos nossos países”, diz. “No momento do lançamento, vemos os cartazes uns dos outros e trocamos informações.”
O Brasil chegou atrasado ao encontro. Mas, enfim, chegou. •
“EU TE AMO, EU TE MATO”
O filme o distancia-se dos modelos de Coppola e Scorsese
Por Cássio Starling Carlos
“A máfia não existe. A máfia é uma invenção de jornalistas”, responde o protagonista de O Traidor ao juiz Giovanni Falcone, quando este o interroga sobre seu vínculo com a Cosa Nostra. Parodiando, podemos dizer: “Os mafiosos não existem. Eles são uma invenção de Hollywood”.
O Traidor distancia-se do modelo cujos paradigmas, na memória popular, são a trilogia O Poderoso Chefão, os épicos criminais de Scorsese e o grandalhão frágil Tony Soprano. Por isso, o filme pode decepcionar quem quer mais uma história recheada de ação e de malvados e vítimas.
Marco Bellocchio incorpora elementos da história factual de Tommaso Buscetta ao seu repertório particular de temas. Em vez de tiroteios e imagens de matanças, O Traidor privilegia a ideia de família como um antro que confunde proteções e traições.
O jogo contraditório “eu te amo, eu te mato”, presente desde o fenomenal primeiro longa-metragem de Bellocchio, De Punhos Cerrados (1965) reaparece transposto para o universo da máfia.
Neste contexto em que os laços não são de sangue, mas de crimes, o poder não usa disfarces. Ele é sempre exercido na forma de violências.
Na sequência de abertura, vemos Tommaso circular entre os espaços da festa na qual se firma a ascensão do novo chefe da Cosa Nostra. No mesmo lugar, ele se desloca até a praia, onde encontra um de seus filhos caído na areia numa viagem de droga.
O trecho condensa as dubiedades que o filme põe em cena. A droga representa, simultaneamente, grandes lucros e autodestruição. A família aparece como um misto de afetos e desafetos.
O trecho ambientado no Brasil, que Bellocchio filma como se fosse um cineasta menos interessado na história e mais nos atores e nas locações turísticas, introduz uma pista falsa.
Cenas de tocaias e de extermínio de seus familiares na Sicília e o temor de ser atacado em seu refúgio brasileiro sugerem o tema da vingança. Mas a decisão de denunciar seus antigos pares não é justificada como desforra – motivação banalizada pelos filmes de ação.
A transição de espaços do Brasil para a Itália marca esta mudança enfática de gêneros no interior do filme. Saindo do Rio de Janeiro e chegando a Palermo, passamos da ação para o drama de tribunal. A partir dali, a trama evolui embaçando as distinções entre bons e maus, juízes e justiceiros, poderes legais e criminais.
Assim, o cineasta completa um novo capítulo na releitura das instituições italianas, empreitada à qual tem se dedicado nas últimas duas décadas.
Depois de ironizar os poderes da fé em A Hora da Religião (2002), de aproximar esquerda e direita em Bom Dia, Noite (2003) e de minimizar a mitologia de Mussolini em Vincere (2009), Bellocchio despoja a máfia da aura forjada pelo cinema americano, tirando o crime do lugar das exceções para mostrar como ele é a regra.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A máfia segundo Marco Bellocchio”
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