Cultura

Um retrato ácido do presente neoliberal, na visão da portuguesa Joana Bértholo 

Em ‘Ecologia’, a autora cria um futuro distópico no qual as palavras têm preço

A escritora portuguesa Joana Bértholo (Foto: Luis Barras)
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O título Ecologia (Dublinense, R$ 89,90) pode, a princípio, levar a uma expectativa equivocada sobre o romance da portuguesa Joana Bértholo, uma das vozes mais instigantes da literatura portuguesa contemporânea. Não que este não seja sobre, digamos, ecologia, mas não exatamente sobre a “ecologia” que você deve estar pensando.

“A palavra tem diferentes acepções, e uma delas é a de uma ciência que estuda relações, no caso do livro, entre homens e o seu meio”, explica a autora a CartaCapital. “Parece-me redutor pensar que para evocar a ecologia, um romance tenha que falar de verde, animais e plantas.”

Ecologia é um livro imenso – não exatamente pelo número de páginas, embora também sejam muitas. Complexa e, ao mesmo tempo, muito divertida, a obra toca em uma questão central do nosso tempo: a mercantilização explícita da vida a partir da razão neoliberal. No caso, a mercantilização da fala: no enredo, as palavras passam a ser cobradas. Surgem pacotes e planos, maneiras de pagar. E, como não poderia deixar de ser, a diferença entre as classes fica ainda mais gritante. Por exemplo, a palavra “luxo” de fato se torna um luxo restrito a apenas 1% da humanidade. 

A ideia para o romance surgiu no começo da década passada, quando houve uma polêmica envolvendo grandes multinacionais que queriam privatizar as sementes agrícolas e criar um novo mercado em torno de algo que existe de graça. “Percebi que tinha encontrado o meu cruzamento de interesses: sementes e mercado, e pagar por algo que até então era grátis. Mas não me sentia compelida a escrever sobre sementes, não sei explicar porquê.” A ideia de falar destes assuntos através do Mercado da Linguagem pareceu-me a solução ótima, até porque poderia dedicar um romance ao que mais me fascina, as palavras.”

Bértholo, no entanto, não vê seu romance como uma distopia futurista. “Mas os leitores decidiram coletivamente que este livro é distópico, e eu não reclamo”, diz. “Eu via as distopias clássicas, que eu tanto admiro enquanto leitora, como narrativas de resistência a um poder totalitário. Ora, eu no meu romance faço uma crítica muito severa a todos nós, talvez a mais severa do livro — é que praticamente não há resistência.”

Falando, aliás, em ‘leitores’, o próprio romance diz que “um livro é o leitor que completa”, e, nesse sentido, Ecologia tem sido muito feliz. “Ele tem tido algum tempo para encontrar muitos leitores ideais, e posso dizer que eles são muito diferentes entre si. É um leitor ativo, que gosta de participar nos múltiplos significados do texto, que não lida mal com a ambivalência, com múltiplas possibilidades, com a abertura. É um leitor que se diverte, enfim, e não se incomoda ao ser instigado a pensar.”

Uma outra questão central do romance é a relação entre a imaginação e a realidade. Ao longo da narrativa, manchetes e notícias de jornal são trazidas – e, não poucas vezes, parecem mais inventadas do que a ficção. “O livro está cheio de links para notícias, é muito ancorado no real. Eu ouvia conversas no ponto de ônibus e no café. Parece um livro sobre o futuro, por ter esse formato distópico, mas foi na realidade um livro profundamente influenciado pelo tempo presente em que foi escrito.”

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