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Onde vivem os monstros

Das criações de Bosch e Dante à série protagonizada pelo chef Gordon Ramsay, as visões do inferno mostram-se irresistíveis

Perdição. Diante do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, os visitantes pouco se detêm sobre o Éden. Os olhos se fixam, sobretudo, no inferno – Imagem: Museu do Prado/Madri
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Um grupo de pesquisadores ligados à neurociência, à engenharia e à biomedicina notou, recentemente, que, quando os visitantes do Museu do Prado, em Madri, param diante do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch, dão pouca atenção ao paraíso. Detêm-se mais sobre a perdição.

O frequentador médio do museu gasta apenas 16 segundos defronte do painel à esquerda, que retrata um Éden alegre e bucólico. A seção central, que mostra uma orgia polimorfa, mantém os espectadores atentos por 26 segundos. Quando chegam ao último lado, eles gastam 33 segundos explorando um inferno perverso, no qual pessoas copulam com pássaros, um porco veste uma touca de freira e um conjunto de gaitas de foles imita um pênis murcho e um saco escrotal inchado.

O inferno é irresistível, a despeito dos coelhos comedores de gente de Bosch e dos demônios que defecam. É, certamente, um lugar atraente demais para ser reserva exclusiva dos fanáticos religiosos que o projetaram como um poço onde poderiam jogar todos aqueles cujo comportamento desaprovavam. Mas, conforme fomos tomando consciência do mundo, deixamos de acreditar no inferno e, provavelmente, até passamos a reconhecer que, em nossos sonhos e fantasias, podemos passar ali muitas horas agradáveis.

A tortura sobrevive nas colônias penais da Rússia e nas gaiolas de arame farpado na fronteira mexicana

O primeiro anjo a cair nas chamas foi um libertador. Satanás, no Paraíso ­Perdido de Milton, rejeita a monarquia hereditária do céu e convoca um parlamento no inferno, chamando seus irmãos chifrudos para uma câmara de debate que ele denomina pandemônio. A experiência democrática não termina bem porque Cristo, lutando para defender o princípio da primogenitura, ameaça os demônios com “10 mil trovões” e os faz correr para se protegerem.

O revés foi apenas temporário. Embora o céu permaneça fora de vista e nebulosamente incrível, o inferno está ao nosso redor. No fundo da paisagem infernal de Bosch, explosões sacodem a terra, fornalhas fumegam e cidades inteiras ardem a noite toda.

No século XIX, essa paisagem podia ser vista em qualquer lugar nas Midlands inglesas. William Blake chamou as fábricas industriais de satânicas. Em Tempos Difíceis, de Charles Dickens, um trabalhador cai numa mina abandonada, engolido por uma “velha tubulação do inferno”.

Dickens protestava contra as fábricas, mas era fascinado pelas versões caseiras do abismo natural e, ao visitar Nápoles, entregava-se a um turismo infernal. Depois de uma perigosa escalada na cratera do Vesúvio ao anoitecer, o escritor regozijou-se ao olhar para “o inferno de fogo fervente abaixo”. Suas roupas e as de seu guia foram queimadas e chamuscadas pelas labaredas vulcânicas.

O inferno tão meticulosamente mapeado por Dante Alighieri em A Divina Comédia classifica suas vítimas e as envia para o sofrimento em nove círculos subterrâneos concêntricos, sendo o mais populoso e popular aquele para onde são despachados os luxuriosos.

William Blake desenhou os pares entrelaçados de amantes condenados circulando sem parar através do que parece ser um tubo intestinal. Entre eles estão Francesca da Rimini e seu cunhado ­Paolo, os adúlteros mais célebres de ­Dante, tema também de um poema sinfônico de Piotr Tchaikovsky.

Para eles e para outros a danação não deixa de ter suas delícias quentes. Na noite de núpcias, Byron supostamente acordou, viu o fogo na lareira brilhando através das cortinas da cama e gritou: “Oh, certamente estou no inferno!” O sexo conjugal não foi, porém, tão infernal quanto desejava e ele logo abandonou a esposa.

Pecados mortais como o de Byron já haviam sido redefinidos como vícios caros, disponíveis para quem pudesse pagar por eles. No século XVIII, libertinos aristocráticos patrocinavam os Clubes do Fogo Infernal, locais onde os cardápios incluíam pratos chamados peito de Vênus ou lombo do diabo.

Tais estabelecimentos têm uma descendência contemporânea: na série Do Inferno ao Paraíso, o chef Gordon ­Ramsay – visto no cartaz de divulgação usando diabólicas asas de couro e brandindo um forcado – faz os estagiários suarem sobre fogões quentes, nos quais ele ameaça jogá-los. O sadismo jocoso de Ramsay é um lembrete de que o inferno foi inventado para nos fazer temer nossos apetites perfeitamente saudáveis.

Outros obtêm acesso a um inferno opcional por meio de máquinas, e não de refeições apimentadas. Esquadrões de pilotos de caça em ambas as guerras mundiais se autodenominavam Anjos do Inferno – esse título foi assumido pelos pilotos infratores das motocicletas Harley-Davidson.

Estéticas. Na série Do Inferno ao Paraíso, o chef Gordon Ramsay ameaça atirar seus estagiários ao fogo. Charles Dickens e Dante Alighieri também se debruçaram sobre o demônio – Imagem: Fox

A série Hellraiser – Renascido do Inferno, de Clive Barker, imagina uma nova raça de demônios chamados Cenobitas. Com a ajuda de “superaçougueiros”, eles refizeram seus corpos, costurando as pálpebras, implantando joias nos crânios e perfurando cada centímetro de carne com agulhas. Essa casta confere um novo tipo de glamour aos que se escarificam e se mutilam.

Monstros pós-humanos mais grotescos do que a imaginação de Barker agora se exibem e posam no tapete vermelho todos os anos no Met Gala – o evento de moda rea­lizado no Metropolitan, em Nova York – com Anna Wintour como mestra das festas infernais. Cher, certa vez, foi ao Met Gala trajada como uma galinha depenada. Katy Perry apareceu como um lustre e, mais tarde, como um hambúrguer. Certamente, cairiam bem na pintura de Bosch.

Nem todos os infernos são tão opcionais e ostensivos. Os três estranhos presos juntos, para a eternidade, em um quarto despido, em Huis Clos, de ­Jean-Paul ­Sartre, esperam encontrar instrumentos de tortura entre os móveis. Mas sua punição é, simplesmente, ter de coexistir: “O inferno são os outros”, descobrirão.

O amargo aforismo existencialista de Sartre foi escrito em 1944, e era profético. Logo surgiriam evidências de infernos que foram construídos para ­pessoas cujos crimes ou pecados eram ser “outro” – religiosa, racial ou sexualmente estranhos. Os campos de concentração, com suas câmaras de gás e crematórios, eram infernos frios, onde se praticava a crueldade gratuita.

As câmaras de gás e crematórios nazistas eram infernos frios, onde se praticava a crueldade gratuita

Em sua instalação épica Fucking Hell, Jake e Dinos Chapman examinam esse panorama do que eles chamam de “ultraviolência”. No trabalho, 30 mil esqueletos carbonizados em trajes nazistas fazem o possível para exterminar a humanidade em um ensaio da batalha final aguardada, com zelo vil, pelos cristãos.

Infernos artificiais continuam a proliferar. Pense nas colônias penais da Rússia e nos tribunais onde os prisioneiros são selados – para sua própria segurança, é claro – em caixas de vidro. Ou nas gaiolas de arame farpado na fronteira mexicana, onde os filhos dos refugiados foram confinados durante o governo Trump. Ou ainda nas embarcações abarrotadas como latas de sardinha com migrantes que pagam aos contrabandistas uma pequena fortuna pela possibilidade de se afogarem.

Deus morreu há muito tempo, mas o inferno que seus propagandistas imaginaram sobreviveu a ele e é, atualmente, administrado como uma instalação oficial ou uma empresa privada lucrativa. O inferno não são as outras pessoas, mas o que fazemos com elas. •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1266 de CartaCapital, em 05 de julho de 2023.

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