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Racha no altiplano
Disputas internas no partido e no governo colocam Luis Arce e Evo Morales em lados opostos
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Há duas décadas, o Movimento ao Socialismo (MAS) exerce o papel de principal força política da Bolívia, ao representar as camadas populares e indígenas, e referência de unidade na América Latina. Ao combinar o contato permanente e o respeito às decisões tomadas pelas bases e a construção de canais de diálogo com outros grupos, a organização aglutinou os movimentos sociais do país, conquistou seguidas vitórias eleitorais sob a liderança do ex-presidente Evo Morales e, por fim, superou o golpe de 2019.
Mesmo no período do governo golpista de Jeanine Añez e apesar da perseguição política a lideranças populares no período, o MAS manteve-se como a maior expressão da esquerda nacional. Um ano depois, a coesão renderia frutos: a consagradora eleição de Luis Arce, apoiado por Morales, à Presidência da República. Passados dois anos, o elo parece partido. Não bastasse o afastamento de setores sociais do governo Arce, a criatura corre o risco de ser domesticada pelo criador. No fim de setembro, Morales decidiu, à revelia do companheiro de partido e natural candidato à reeleição, lançar sua campanha antecipada à disputa presidencial de 2025.
“Fizemos sacrifício para recuperar a democracia e confiávamos na continuidade da nossa revolução cultural, mas Arce, desde o início, se distanciou das organizações sociais. O que acontece aqui é similar ao ocorrido no Equador, quando Correa confiou em seu vice e, posteriormente, com o poder em mãos, Lenín Moreno tomou decisões contrárias ao projeto”, compara Aquilardo Caricari, dirigente sindical do Trópico de Cochabamba. A região, que vai sediar o próximo congresso do partido sem a participação de setores ligados a Arce, está no centro da controvérsia, por conta de medidas de repressão adotadas no território. “O governo ataca o Trópico e estigmatiza os produtores de folhas de coca e os persegue. Quem está por trás disso é o império norte-americano, com o objetivo de implicar Evo em crimes de narcotráfico.”
A desarticulação na cúpula coloca em dúvida o destino do Pacto de Unidade, a partir do qual atuam os cinco principais movimentos sociais de trabalhadores rurais, urbanos e povos originários. “Evistas” e “arcistas” foram às vias de fato na reunião convocada pela Confederação Sindical Única de Trabalhadores Campesinos, realizada em El Alto no mês de agosto. Resultado: cerca de 500 feridos. “Há duas partes nesse processo: uma de gestão, encabeçada por Arce, e outra de conotação política, levada a cabo por Evo, que deseja ser dono do poder, passando por cima dos movimentos e de seus dirigentes”, opina o analista econômico Martin Moreira.
As trocas de acusações e os embates entre as alas mais burocráticas e renovadoras contra aquelas identificadas com as ideias do Estado plurinacional abarcam ainda sensíveis questões raciais, observa o sociólogo Gabriel Villalba. “Revelou-se um racismo no interior do MAS, muitos líderes e militantes veem em Arce um reflexo do que são: brancos, urbanos, com formação intelectual, que nessa visão superaria o índio Morales, ignorante, que não foi ao colégio. Trata-se de uma estrutura mental colonial persistente.” Segundo o último censo, mais de 40% da população se declara indígena – as etnias quéchua e aimará predominam. “Evo se constitui como figura política nas lutas dos anos 90 e 2000, durante as guerras da coca, da água e do gás. Personifica o sujeito histórico originário, campesino condutor de um processo de mudança de uma maioria indígena que experimentou na carne as carências do povo, por isso foi o melhor presidente que tivemos. Arce tem um perfil tecnocrata, acadêmico e veio da classe média. Há diferença de representatividade entre ambos”, afirma Villalba.
Movimentos sociais e indígenas afastaram-se do atual presidente
A direita aproveita o ambiente de desgaste para sugerir o fim de um ciclo e a perspectiva de renovação, embora siga a apostar no veterano ex-presidente Carlos Mesa, de triste memória para os bolivianos. Apesar da prisão da ex-presidente Jeanine Añez e do governador de Santa Cruz Fernando Camacho por denúncias de corrupção, os líderes do golpe em 2019 tentam, por sua vez, reacender o ímpeto dos apoiadores. Os bloqueios de estradas do ano passado, com duração de mais de um mês, no estado cruzenho não só paralisaram a atividade econômica, como também deram uma medida da força reprimida dos adversários. “Durante os últimos 17 anos, esse regime propõe a lógica de confrontação entre os bolivianos, ressaltando as diferenças entre campo e cidade, Oriente e Ocidente, indígenas e não indígenas, aprofundando a racialização da política com objetivos eleitorais. Esse modelo está esgotado”, avalia o deputado de Oruro Enrique Urquidi, líder da bancada da Comunidade Cidadã.
A situação aposta, em contraposição, em uma agenda positiva, com destaque para os indicadores econômicos. A inflação anual foi de 1,6%, o desemprego está em 4,3% e o PIB cresceu acima de 4% no ano passado. A adesão ao BRICS, o avanço no projeto de industrialização do lítio (as maiores reservas mundiais estão no Salar do Uyuni) e as obras de infraestrutura, incluída a ponte de Guayaramerín, ligação do país com o Brasil, são os trunfos do MAS para permanecer no poder. A severa seca provoca, no entanto, efeitos negativos nas lavouras e no comércio. “Ultimamente, as ruas e os mercados estão vazios e as vendas caíram bastante. O dinheiro que entra é para pagar as contas e nada mais”, queixa-se Cris Brito, atendente no Mercado Lanza, em La Paz. A assistente de cozinha, cujos três filhos estudam na Universidade Pública San Andrés, cogita migrar para o Brasil em busca de trabalho.
Entre incertezas e preocupações, os bolivianos sentem os pesados ares de uma nova fase de conflito. Arce e Morales foram vistos juntos pela última vez nos Jogos Plurinacionais da Juventude, em Cochabamba, em julho. Desde então, só há espaço para intrigas. •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Racha no altiplano’
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