Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

cadastre-se e leia

Batalha perdida

O fracasso das esquerdas nas eleições dos conselhos tutelares reflete a frágil organização dos grupos progressistas. A extrema-direita segue mobilizada

Voto a voto. A eleição no domingo 6 reflete a polarização política do País
Apoie Siga-nos no

Os reveses sofridos pelas esquerdas e os sucessos alcançados por grupos evangélicos e setores bolsonaristas nas eleições dos conselheiros tutelares são sintomas de um problema recorrente manifestado pelos grupos progressistas. O problema da frágil organização, que se desdobra em dois eixos: organização e hegemonia. As esquerdas vêm perdendo terreno e substância nesses dois fundamentos. Desde Maquiavel, sabe-se que sem um domínio e uma preponderância nesses eixos, as vitórias são difíceis e, caso se vença, o desempenho será sofrível e as mudanças serão precárias.

Em todas as realidades sociopolíticas sem hegemonia estável e consolidada ocorrem choques de força que reorientam os rumos do Estado e da sociedade. Esses choques não são necessariamente militares ou revolucionários. Nos últimos tempos, têm sido choques que se relacionam às violações do Estado de Direito, ao controle das Cortes Constitucionais e dos Parlamentos pelo Executivo, ao afastamento de governantes legitimamente eleitos, ao controle dos sistemas eleitorais, ao questionamento de eleições legítimas e ao estabelecimento de ditaduras civis.

Nesses momentos de choque, nos quais não há organização dos partidos e dos movimentos sociais progressistas, este campo tende a ser derrotado. O impeachment fraudulento contra Dilma Rousseff é um caso exemplar dessa tipologia. Enquanto a direita fez manifestações avassaladoras pelo impedimento, a esquerda não teve força suficiente para promover uma virada na opinião pública e pressionar o Congresso.

No próprio dia 8 de janeiro, o golpe só fracassou porque ele foi desorganizado e sem uma liderança visível. Bastava apenas uma unidade militar qualquer que o apoiasse e, provavelmente, o golpe teria triunfado, ao menos temporariamente. Os partidos e os movimentos progressistas não tinham força organizada e mobilizada para se opor.

O eixo da organização corresponde ao momento da força. As forças militar, social e política são elementos constitutivos do poder e condição de autonomia do agir dos sujeitos políticos visando promover mudanças. A hegemonia corresponde ao momento do convencimento, da persuasão, da capacidade de imprimir direção e sentido a grupos sociais ou a uma sociedade. Ela está imbricada com a disputa de ideias, valores, concepções, visões de mundo e ideologias.

Para movimentos e partidos políticos que não são hegemônicos, a prioridade é a organização de forças e a disputa de hegemonia na sociedade, complementada com a ocupação de espaços nas instituições do Estado. As esquerdas vêm priorizando o terreno do Estado como lugar principal de seus objetivos, de suas ações e de seus interesses.

Os partidos de esquerda adotaram o mesmo modus operandi dos partidos liberais clássicos, que são meramente institucionais. O surgimento de uma extrema-direita organizada colocou em xeque o modo de agir das esquerdas e encurtou o espaço político dos partidos liberais e da direita tradicional.

Os reveses da esquerda nas eleições para os conselhos tutelares refletem essas escolhas. As bases da extrema-direita compõem-se de dois grupos: os evangélicos e os bolsonaristas. Os evangélicos organizam-se prioritariamente no território, nas periferias. Os bolsonaristas priorizam os meios digitais. Bolsonaristas e evangélicos convergem nos temas e valores na disputa da hegemonia. Os primeiros travam a guerra cultural contra o marxismo, ideologia que teria forte influência nas instituições sociais no Ocidente. Os evangélicos travam a guerra espiritual contra as forças do Mal que dominam pessoas, famílias, cidades, regiões, estados e instituições.

Nas guerras da extrema-direita, todos os meios são válidos. Trata-se de salvar o mundo dominado por comunistas, pedófilos, abortistas, pervertidos sexuais, feministas, ocultistas, macumbeiros, promotores do homossexualismo, inimigos da família, e por aí vai. A extrema-direita leva vantagem na organização territorial e na organização digital. No território, há uma quantidade infindável de igrejas que organizam e disseminam valores conservadores. No digital, a extrema-direita leva vantagem na ocupação dos espaços, no engajamento e na disseminação de conteúdos.

Para a extrema-direita, na guerra vale tudo: a mentira, a ameaça, a força, a fraude, o ódio. A esquerda está desorientada. Limita-se por pruridos morais. Está numa guerra e não usa seus meios e estratégias. Pensa vencer apenas proclamando fins bons e nobres e denunciando os meios da direita. Mas, para vencer guerras, é preciso combinar fins e meios. Nenhuma guerra é eficaz sem o uso adequado de poderosos meios. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Batalha perdida’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo