Entrevistas

Tentativa de golpe na Bolívia parece mais um ato pessoal que das Forças Armadas, diz pesquisadora

Para Alina Ribeiro, a vida política do país depende de uma solução para o estranhamento entre Luís Arce e Evo Morales

O presidente da Bolívia, Luís Arce (no centro), após conspiração golpista em 26 de junho de 2024. Foto: Aizar Raldes/AFP
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As fragilidades econômicas da Bolívia são um fator central para compreender uma história marcada por golpes de Estado, mas no caso do levante desta quarta-feira 26 não se deve desconsiderar o impacto do anti-evismo – ou seja, o repúdio ao ex-presidente Evo Morales – em setores das Forças Armadas. Ainda assim, há de se questionar o real tamanho de uma conspiração que, à primeira vista, parece se limitar a figuras muito próximas ao ex-comandante do Exército.

A avaliação é de Alina Ribeiro,  pesquisadora no Núcleo de Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDAC-CEBRAP) e no Núcleo de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (NEL-UnB).

O presidente Luís Arce empossou a nova cúpula militar do país horas depois de integrantes das Forças Armadas e policiais tomarem a Praça Murillo e cercarem as sedes do governo e do Congresso. Responsável pela tentativa de golpe, o general Juan José Zúñiga, chefe do Exército até esta quarta, foi preso no início da noite, por determinação da Procuradoria-Geral. A detenção ocorreu na entrada da sede do Estado-Maior, em La Paz.

No início da noite, os militares começaram a se retirar das imediações dos palácios com seus tanques.

Para Ribeiro, doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo, ainda será necessário refletir sobre a verdadeira extensão do movimento desta quarta. A impressão inicial da pesquisadora, contudo, é que ele envolveu apenas as unidades do Exército mais alinhadas em torno de Zúñiga. “E me pergunto se não foi uma tentativa pessoal. Até que ponto essa tentativa de golpe foi institucional? As Forças quiseram dar um golpe no governo? Isso entenderemos ao longo do tempo.”

Ela entenda que a sequência de crises políticas a abalarem a Bolívia tem raízes nas debilidades da economia, na herança colonial e, mais recentemente, nas reações à figura de Evo Morales. Atualmente, o distanciamento entre ele e Arce sacode não apenas o Movimento ao Socialismo – partido de ambos -, mas amplas parcelas da sociedade.

Leia os destaques da entrevista de Alina Ribeiro a CartaCapital:

CartaCapital: Por que há tanta facilidade para ocorrerem episódios com esse grau de turbulência na Bolívia?

Alina Ribeiro: A história da Bolívia é marcada por muitos golpes de Estado. Isso é um destaque em relação a outros países da América Latina e se dá por razões múltiplas e variadas.

A questão econômica é um ponto fundamental, porque a Bolívia é o país mais pobre da América do Sul. E essa tentativa de hoje em específico é resultante de uma ascensão de um anti-evismo muito forte na Bolívia. Então, entramos em outra especificidade: a figura de Evo Morales passa a suscitar certas efervescências sociais que antes não víamos, ao menos não dessa forma como a de hoje.

O golpe de 2019 simboliza muito esse anti-evismo. Foi o último golpe relativamente bem-sucedido na Bolívia. E a tentativa de hoje se relaciona também com esse imbróglio que os bolivianos vivem em relação às eleições do ano que vem: ainda não se sabe se será Luís Arce ou Evo Morales a disputar a cadeira presidencial pelo Movimento ao Socialismo. Isso gera certas disputas sociais e políticas que tendem a estar cada vez mais presentes no cenário boliviano.

Desde 2016 podemos ver isso com mais clareza, quando o governo de Evo Morales se desvinculou dos movimentos sociais, que foram os movimentos constitutivos de base.

CC: Qual é a situação atual entre Evo e Arce?

AR: É de distanciamento e de embates, até na mídia boliviana. Evo é muito ativo no Twitter, por exemplo, e sempre escreve opiniões muito enfáticas sobre o governo de Luis Arce. Então, eles realmente estão divididos no momento. Evo também protagonizou certas disputas com Álvaro Garcia Linera, vice-presidente em seu governo, e hoje estão distanciados.

Essa disputa entre Luís Arce e a figura de Morales, uma figura muito simbólica e muito importante na história recente da Bolívia, tende a complicar as coisas cada vez mais. Os movimentos sociais bolivianos estão divididos: dentro de um mesmo movimento há uma ala que apoia Arce e outra ala que apoia Evo. Isso gera uma certa confusão no sentido de não haver um projeto político claro no atual momento da Bolívia.

As eleições acontecerão em outubro do ano que vem e ainda não conseguimos olhar com clareza possíveis desenvolvimentos dessas articulações políticas.

General Juan José Zúñiga. Foto: Redes Sociais/Reprodução

CC: É forte na Bolívia a discussão sobre a interferência das Forças Armadas na política?

AR: Essa discussão é central, até pelo golpe de 2019, que gerou a renúncia de Evo e levou a Bolívia a ser governada por Jeanine Áñez, um governo de extrema-direita.

Naquele golpe um papel fundamental foi o das Forças Armadas, quando o então comandante general Williams Kaliman foi à mídia para pressionar pela renúncia de Evo. As Forças, naquele momento, estavam muito mobilizadas a favor da saída de Evo.

Hoje, pelo que estudei desde que essa tentativa começou, ela foi realizada por um setor específico do Exército, setor esse que estava sob o comando do general Juan Zúñiga.

A impressão que eu tenho é que atualmente as Forças Armadas já não são mais tão unitárias como eram no golpe de 2019. Mas o que aconteceu hoje certamente é um episódio para ficarmos bastante atentos e observando com muito cuidado a articulação nas Forças Armadas.

É bom lembrar também que o governo de Luís Arce simboliza um certo distanciamento da esquerda radical por parte do MAS. Morales era mais de esquerda radical do que Arce, e isso gera certas insatisfações dentro do partido ou em movimentos sociais que gostariam de um governo mais à esquerda. Mas, em relação às Forças Armadas, a impressão que tenho é que quanto menos inclinado à esquerda, menos elas vão se organizar para agir ativamente [contra o governo].

Me parece também que a tentativa de golpe de hoje se deu por uma questão muito particular, porque o ex-comandante, que é quem a liderou, foi demitido horas antes. É como se fosse uma retaliação, tanto que ele mobilizou as unidades do Exército que estavam sob o seu comando e se dirigiu ao Palácio Central.

CC: Essa tentativa de golpe deve provocar alguma mudança concreta?

AR: Talvez seja cedo para pensar em possíveis mudanças, mas acho que as eleições no ano que vem serão impactadas por esse acontecimento de hoje. E o impacto pode ser um fortalecimento do MAS enquanto partido, mas esse fortalecimento depende muito de uma resolução do conflito entre Evo e Arce.

Essa divisão enfraquece bastante um partido que é fundamental para a história política boliviana, o partido mais forte da Bolívia hoje em dia. É como se a vida política nacional dependesse, de certa forma, da resolução das questões mais fundamentais do MAS.

CC: Há, por fim, alguma perspectiva de mudança nesse cenário de sucessivas crises políticas na Bolívia?

AR: Esses conflitos dizem respeito a um longo histórico de constituição da Bolívia enquanto país, mas não acho que que a história política da Bolívia se distingue em grande medida da história de outros países latino-americanos.

Ao meu ver, é uma questão bastante estrutural, embora seja um pouco abstrato falar sobre isso. É uma herança colonial, mesmo, que não permitiu que os países da região desenvolvessem bases econômicas, sociais e políticas e instituições fortalecidas. Mas alguns países acabam sofrendo mais com a instabilidade política, como é o caso da Bolívia.

A Bolívia teve alguns momentos muito importantes. Evo Morales é uma figura muito forte, porque protagonizou um processo de inclusão política muito intenso na Bolívia. A partir do primeiro governo de Morales, os indígenas passaram a ocupar cargos estatais e a influir no processo de formulação de políticas públicas.

Hoje, se você olhar para a composição da Câmara ou do Congresso da Bolívia, verá pessoas indígenas que antes não ocupavam a estrutura estatal. Então, é difícil traçar essas perspectivas futuras para a Bolívia, porque o próprio passado recente já junta momentos de avanço e momentos de tensão dentro do próprio governo de Morales.

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