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Benefícios fiscais, tributários e creditícios para os mais ricos minam as políticas públicas

Imagem: Marina Porto Frade/Angra dos Reis
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“Que direito o Estado tem de abrir mão de uma determinada quan­tia de arrecadação para favorecer o lucro do empresário?”, perguntou o presidente Lula em entrevista ao portal UOL na quarta-feira 26. Quando há crise econômica, disse, é justificável utilizar a desoneração tributária para o alívio temporário das empresas, mas o lobby e a ação parlamentar são usados para eternizar o benefício. “Aqui no Brasil, quando a gente aprova desoneração para cinco anos, quando chega nos cinco anos, tem projeto para desonerar mais dez, quando chega nos dez, tem mais dez e fica política perene”, sublinhou. Desonerações de empresas, prosseguiu o presidente, só fazem sentido quando acontecem por tempo determinado e são acompanhadas de contrapartidas como a manutenção da estabilidade do emprego.

Lula referia-se, indiretamente, à desoneração de 17 setores empresariais em 2012, renovada seguidamente e que prossegue até hoje. O governo tentou recuperar a perda da receita apropriada pelos empresários, com a Medida Provisória que visava eliminar as irregularidades comprovadas dos benefícios relacionados à arrecadação do ­PIS/Cofins­,­ mas a proposta não durou uma semana e foi derrubada por uma tropa de choque dos setores ditos produtivos, o agronegócio à frente.

O presidente voltou ao tema dias depois de ter se declarado impressionado com a ordem de grandeza dos benefícios tributários, mais de 700 bilhões de reais. Lula destacou que os maiores privilegiados são a agricultura, com mais de 60 bilhões de isenções e benefícios, e o setor de combustíveis, com cerca de 30 bilhões. Há, no entanto, os benefícios tributários justificáveis, como aqueles concedidos aos medicamentos, ou os destinados às pequenas empresas, com faturamento abaixo de 1,8 milhão de reais, entre vários outros. O que incomoda, não só o presidente, são os chamados privilégios tributários, benesses dadas a quem não precisa.

Os maiores privilégios de impostos totalizam 440,5 bilhões de reais

O total de benefícios citado por Lula consta do relatório da Instituição Fiscal Independente do Senado apresentado em abril. O volume de subsídios tributários, financeiros e creditícios voltou a crescer, apontou o economista Eduardo Nogueira, da IFI, com as projeções a indicar uma renúncia em torno de 700 bilhões de reais em benefícios concedidos em 2023, o maior valor da série histórica. As estimativas para 2024 indicam a redução de subsídios tributários, mas os subsídios financeiros e creditícios podem aumentar em razão da ampliação de programas e da redução da taxa de remuneração de fundos e programas, entre outros fatores.

A expansão do volume de subsídios levou a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil a criar um ranking, o “privilegiômetro tributário”, com os dez maiores privilégios tributários. Privilégios tributários são, segundo uma Nota Técnica da entidade, “aqueles gastos tributários – resultado da omissão na criação de tributo constitucionalmente previsto e das isenções, anistias, remissões, subsídios, benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia – concedidos a setores ou parcelas específicas de contribuintes, sem que exista contrapartida adequada, notória ou comprovada por estudos técnicos, para o desenvolvimento econômico sustentável sem aumento da concentração de renda ou para a diminuição das desigualdades no País”.

Os maiores gastos tributários considerados privilégios, isto é, sem qualquer contrapartida benéfica para a sociedade, totalizam 440,5 bilhões em 2023, segundo a Unafisco. A soma inclui 74,6 bilhões de reais de isenção dos lucros e dividendos distribuídos por pessoas jurídicas, e 73,4 bilhões referentes à não instituição de Imposto Sobre Grandes Fortunas. Ainda na mesma categoria figuram 54,6 bilhões da Zona Franca de Manaus, 8,5 bilhões da Sudene, 6 bilhões da Sudam, 906 milhões relativos a Mercadorias Norte e Nordeste, 447 milhões de Áreas de Livre Comércio e 158 bilhões da Amazônia Ocidental, no total de 78,7 bilhões. Nenhum desses gastos apresenta “notória contrapartida econômica ou social”, segundo a Unafisco.

As isenções na Zona Franca de Manaus somam 54,6 bilhões de reais – Imagem: Ministério da Economia

Os maiores benefícios tributários com contrapartida econômica ou social, isto é, que resultam em algum benefício para a parcela mais pobre da sociedade, somam 123,3 bilhões de reais, dos quais 88,5 bilhões dizem respeito ao Simples Nacional e 34,8 bilhões para Agricultura, Agroindústria e Desoneração da Cesta Básica. Entre os gastos tributários com retorno para a sociedade, sobressaem 24,5 bilhões de reais em deduções de despesas médicas, que suprem, em parte, a insuficiência de investimento público na saúde, e 20,6 bilhões de isenção do pagamento do Imposto de Renda de aposentados por moléstia grave ou doença. Outros exemplos são os 9,3 bilhões relativos ao ProUni e à importação de equipamentos destinados a pesquisas autorizadas pelo CNPq, e 1 bilhão para auxiliar cidadãos com mobilidade reduzida na aquisição de cadeiras de rodas e aparelhos que melhorem suas condições de vida.

Os técnicos da Unafisco fazem uma ressalva sobre o “privilegiômetro. Trata-se do fato de o Demonstrativo dos Gastos Tributários, elaborado pela Receita Federal, não trazer informações acerca da totalidade das despesas. Algumas renúncias não constam do Demonstrativo, inclusive “dois exemplos bem expressivos”: 1) a isenção do imposto sobre a renda dos lucros e dividendos distribuídos por pessoa jurídica, instituída pelo art. 10 da Lei 9.249/1995, (no governo FHC, cabe destacar); 2) as anistias e remissões concedidas nos programas de parcelamentos especiais. Ambos deveriam constar no DGT, conforme determinação constitucional, mas não foram considerados.

De acordo com a Receita Federal, a isenção do IR não é considerada no DGT, pois “o tratamento destinado aos dividendos é considerado como parte da estrutura geral do Imposto de Renda”. A Unafisco contesta essa interpretação, que não deixa de ser benéfica à manutenção dos privilégios tributários para os ricos.

Os benefícios fiscais sem retorno social permitiriam construir 85 mil escolas ou 8,2 milhões de casas populares

Uma consulta ao Demonstrativo dos Gastos Tributários Bases Efetivas 2021 – Série 2019 a 2024 –, publicado pelo Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, mostra que, de fato, não estão computados os volumes significativos de recursos que o Estado deixa de arrecadar com Imposto de Renda de lucros e dividendos e as anistias e remissões nos programas de parcelamentos. Os dez maiores gastos tributários, segundo o Demonstrativo, são o Simples Nacional, com 91,3 bilhões de reais, seguido de Agricultura e Agroindústria, 51 bilhões, e de Rendimentos Isentos e Não Tributáveis, com 37,2 bilhões. Seguem-se Desenvolvimento Regional, com 33,2 bilhões, e Entidades Sem Fins Lucrativos, 31 bilhões. Os demais integrantes do ranking são Combustíveis, 31 bilhões, Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio, 25 bilhões, Deduções do Rendimento Tributável do IRPF, 24 bilhões, Medicamentos, 15 bilhões, e Benefícios do Trabalhador, 14 bilhões.

A bolada dos privilégios, isto é, de tudo aquilo que não é arrecadado de contribuintes com elevada capacidade de pagamento, deixa de se transformar em hospitais públicos, escolas, casas e farmácias populares, investimento em infraestrutura para transporte coletivo etc. Os 440 bilhões em privilégios tributários são suficientes para a construção de 85 mil escolas, 70 mil UBS, 87 mil UPAs e 8,2 milhões de unidades habitacionais, calcula a Unafisco.

A drenagem acontece não só por insuficiência de força política para reversão desse quadro, mas por causa do enraizamento profundo das benesses para os abastados em um amálgama de leis e regulamentos consolidado ao longo de décadas, que compõem verdadeira couraça a proteger os interesses até hoje inatacáveis da riqueza no País. Destaca-se, entre inúmeros exemplos, o projeto de lei complementar para instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, a ser utilizado, segundo o texto original, no financiamento da saúde pública, que desde 2008 se arrasta na Câmara dos Deputados. De acordo com estudo publicado em 2020, o Imposto sobre Grandes Fortunas, com uma alíquota de 4,8%, aplicada a patrimônios líquidos superiores a 4,6 milhões de reais (base de cálculo), apresenta potencial arrecadatório de 58,8 bilhões, já considerada uma sonegação estimada de 27%, tributando-se apenas 220 mil contribuintes, ou 0,1% da população. Aplicando-se a este valor uma correção calculada com base no IPCA e no PIB de 2020 a 2022, o potencial arrecadatório seria de 73,4 bilhões de reais.

Dados de 2021.
Fonte: Receita Federal do Brasil. Elaboração: Unafisco Nacional.

Uma forma de bloquear subsídios aos mais pobres é execrá-los em princípio, como se todos fossem nefastos às contas públicas e ao País, o que não corresponde à realidade. Excomungados pelo neoliberalismo, os subsídios fazem parte, contudo, da história econômica dos países e da sua ascensão à condição de nações desenvolvidas, frisa o economista Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge. “O governo transfere muito dinheiro de uma parte da economia para outra. Ele tributa alguns e usa o dinheiro para subsidiar outros”, explica Chang no livro Economia: Modo de Usar. Pagamentos de benefícios previdenciários são as mais importantes das transferências mediadas pelo governo, prossegue o autor, mas também há subsídios para tipos específicos de atividades produtivas, por exemplo, agricultura, indústrias incipientes, indústrias em declínio e investimentos em pesquisa e desenvolvimento de empresas do setor privado, remodelação de métodos de economia de energia em domicílios.

Todos ou quase todos os caminhos das distorções nessa área começam ou terminam no Congresso. As omissões legislativas em relação à isenção de lucros e dividendos do imposto sobre a renda, anistias e remissões em parcelamentos especiais e falta de instituição do imposto sobre grandes fortunas constituem “verdadeiro privilégio tributário, visto que se trata de opção ideológica que protege a camada mais abastada de brasileiros”, dispara a Unafisco.

A reforma tributária, segundo a opinião dominante, deverá constituir um avanço em racionalização e redução de cumulatividades, a partir de operações como tornar iates e jatinhos tributáveis, mas tende a perenizar desigualdades. No estudo Reforma Tributária: Desigualdade, Progressividade e Proposições Legislativas, os economistas da UnB e consultores legislativos Pedro Garrido da Costa Lima e Roberto Bocaccio Piscitelli afirmam que algumas propostas da reforma tributária em curso são “insuficientes” para enfrentar a “iniquidade” presente no sistema tributário brasileiro. Costa Lima e Piscitelli fazem um levantamento das propostas legislativas que, em sua opinião, podem auxiliar na discussão sobre modificações na estrutura tributária.

O 1,16% mais rico aufere 46,3% do total de rendimentos isentos

Conforme se avança nas faixas de rendimentos, acrescentam, aumenta a participação de rendimentos isentos e sujeitos a tributação exclusiva, associados à renda de capital. O 1,16% mais rico aufere 46,3% do total de rendimentos isentos, que incluem distribuição de lucros e dividendos aos sócios de empresas, e 40,1% do total de rendimentos sujeitos a tributação exclusiva, como os decorrentes de aplicações financeiras. “Essa parcela mais rica respondeu por 16,2% do imposto devido, concentrou 33,8% de bens e direitos líquidos de dívidas e ônus e amealhou 71,3% das heranças e doações”, anotam os economistas. O Imposto de Renda da pessoa física é progressivo até a faixa de 30 a 40 salários mínimos e torna-se regressivo para rendimentos mais elevados.

Alguns autores, acrescentam Costa Lima e Piscitelli, descrevem “uma reforma tributária sorrateira” na década de 1990. Uma modificação marcante foi introduzida pela Lei 9.249, em 1995, que isentou do Imposto de Renda a distribuição de lucros e dividendos, inclusive os remetidos ao exterior. Além disso, criou a figura dos juros sobre capital próprio, “uma espécie de despesa fictícia que pode ser deduzida do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido com base no lucro real, e reduziu a alíquota do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, de 25% para 15%, e do adicional sobre os lucros”.

Nas décadas seguintes, acrescentam os economistas, essa reforma infraconstitucional foi mantida, e outras modificações na legislação acrescentaram benefícios à renda do capital e compõem a configuração atual da desigualdade tributária. A Lei 11.033, de 2004, reduziu de 20% para 15% o Imposto de Renda para ganhos líquidos em Bolsas de Valores e a Lei 11.312, de 2006, reduziu a zero o Imposto de Renda e a CPMF para investidores estrangeiros em fundos de investimento de títulos públicos federais. “A disparidade na tributação inclui o fato de que, enquanto a renda do trabalho está sujeita à tabela progressiva do Imposto de Renda Pessoa Física, os rendimentos do capital de pessoas físicas têm tributação diferenciada e menor, especialmente em razão da incidência exclusiva na fonte para determinados rendimentos”, destacam.

Programas como Farmácia Popular ou Minha Casa, Minha Vida seriam muito maiores se parte da desoneração tributária fosse eliminada – Imagem: Pillar Pedreira/Ag. Senado e Prefeitura de Recife

A forma atual de tributação das empresas, dizem os autores do estudo, que pagam, na comparação com as pessoas físicas, menos tributos em razão do regime de lucro presumido do Imposto de Renda Pessoa Jurídica e de deduções e benefícios e de possibilidades de planejamento tributário no regime de lucro real, prejudica a isonomia e incentiva o fenômeno da denominada pejotização, a transformação de pessoa física em pessoa jurídica (PJ). Acrescente-se que a reforma trabalhista do governo de Michel Temer, que estabelece, na prática, uma nova Consolidação das Leis do Trabalho, ainda fornece mais incentivos à pejotização, a exemplo da figura jurídica do trabalhador autônomo exclusivo, por meio da qual se pretendeu legalizar a contratação de pessoas jurídicas de maneira a não caracterizar relação trabalhista.

Em uma cascata de benefícios indevidos que parece sem fim, a Lei 9.249 de 1995 extinguiu a punibilidade do crime contra a ordem tributária, até mesmo de sonegação de impostos, se houver pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, registram Costa Lima e Piscitelli. A Lei 9.430, de 1996, ainda postergou, para depois da decisão final na esfera administrativa, o encaminhamento de representação fiscal para fins penais ao Ministério Público em crimes contra a ordem tributária.

Ainda é possível, entretanto, buscar tributação progressiva da renda, com o aumento das faixas do IRPF e IRPJ, e do patrimônio, em heranças, doações e propriedade fundiária, e taxação dos dividendos de forma progressiva, das grandes fortunas e da remessa de lucros e dividendos ao exterior, além do fim dos juros sobre capital próprio. Essas e outras medidas, ressaltam os autores, possibilitariam até a redução dos impostos indiretos e da tributação sobre empresas do setor produtivo e atividades estratégicas, mantendo-se a carga tributária estável.

Conquistar avanços na redução da iniquidade tributária depende, no entanto, de uma racionalidade e um interesse público improváveis em um Congresso que, encastelado na defesa dos próprios privilégios, transformou o presidente Arthur Lira em senhor da aprovação ou rejeição de projetos. •

Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bolsa iate’

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