Economia

O que explica o perrengue cambial brasileiro

A imprensa destaca fatores domésticos como razões do movimento. Como sempre, a história é mais complexa

Queda de braço. Lula e Haddad são cobrados por corte nos gastos, enquanto Campos Neto mantém os juros nos píncaros – Imagem: Marcelo Camargo/ABR e José Cruz/ABR
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A moeda brasileira vem passando por um agudo processo de desvalorização em 2024. A perda de valor acumula 18%. A imprensa destacou fatores domésticos como explicação do movimento, em particular as críticas do Presidente Lula às ações e declarações do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. Como sempre, a história é mais complexa. Há fatores globais, regionais e nacionais por detrás deste movimento

No flanco externo, temos o sistema global do dólar. Mudanças nas expectativas de crescimento global, na taxa de juros dos EUA e nos preços das commodities podem afetar significativamente o fluxo de capital para mercados emergentes. As políticas monetárias expansionistas nos Estados Unidos, caracterizadas por baixas taxas de juros e flexibilização quantitativa, geram um influxo maciço de capital especulativo para mercados emergentes como a América Latina. Esse fluxo de capital busca retornos mais altos em comparação com mercados desenvolvidos, pressionando a apreciação da moeda local.

No entanto, quando a percepção do mercado muda e os investidores estrangeiros se retraem, a rápida desvalorização cambial intensifica a volatilidade. O gráfico abaixo mostra que o dólar se aprecia com relação a todas as moedas, mas algumas sofrem desvalorização mais intensa, como Brasil, México, Chile e Colômbia.

Observando a dimensão regional da América Latina, países com déficits fiscais persistentes e alta dívida pública tornam os investidores hiper-sensíveis a riscos de instabilidade fiscal e política, catalisando fugas de capitais e as subsequentes desvalorizações das moedas locais. Em face da vitória recente de governos progressistas na América Latina, o risco percebido por investidores tem crescido.

A crescente desigualdade de renda e de riqueza na América Latina também contribui para a volatilidade cambial. Além de limitar a capacidade da economia de absorver produtivamente o influxo de capital externo, a concentração do poder decisório dos gestores da riqueza torna as economias mais suscetíveis a flutuações cambiais. O gráfico de Robin Brooks mostra (na linha roxa) como os investidores residentes influenciam os fluxos de capitais no Brasil.

Um fenômeno recente que chamou a atenção no última Relatório Trimestral de Inflação do BC foi o avanço do hiato do câmbio de exportação, isto é, os exportadores não repatriam os dólares obtidos, mantendo-os em contas no exterior, para baratear custos operacionais e de transportes. Este valor chegou a 60 bilhões de dólares nos últimos 3 anos. É mais uma fonte de pressão altista sobre o câmbio.

Finalmente, no topo deste iceberg, os fatores domésticos agudizam ou aliviam as pressões cambiais. Este é o caso brasileiro, em que a moeda parece estar sistematicamente mais depreciada do que países similares, em termos de nível de desenvolvimento. Há, de fato, alguma coisa específica ao Brasil por detrás desta desvalorização.

Neste contexto, o Banco Central poderia ter atuado para conter a depreciação. No entanto, alegou-se não falta de liquidez, o que justificaria a ação. Porém, os dados mostram outro problema. Desde 2020, o BC ampliou muito o estoque de SWAPs cambiais, o qual bateu  100 bilhões de dólares (cerca de 546 bilhões de reais) em janeiro de 2022. Desde então, o BC rola diariamente o estoque de SWAPs para manter a moeda relativamente estável.

O efeito desta soma muito elevada de SWAPs é reduzir sensivelmente as reservas líquidas do país (linha vermelha do gráfico abaixo). O BC entendeu que não fazia sentido ampliar esta exposição das reservas internacionais. Campos Neto esgotou este instrumento, protegendo o câmbio para o governo Bolsonaro e derrubando nossas reservas líquidas para perto de 220 bilhões de dólares (contra 358 bilhões de dólares de reservas brutas).

Como o poder de decisão sobre a gestão da riqueza é excessivamente concentrado em algumas dezenas de grandes bancos, fundos de investimento e de pensão, a visão de economia que estes agentes têm acaba afetando a percepção de risco dentro da economia. A minha hipótese é a seguinte: sempre que o mercado externo fica mais arriscado, os investidores residentes transferem este risco para a política econômica interna, a qual deve compensar o risco externo mais elevado com maior segurança e maiores oportunidades de retorno.

A linha amarela na figura abaixo mostra como todos os contratos incorporaram taxas mais elevadas em 03 de julho em comparação com 4 de janeiro deste ano. Isso significa pressão para o BC elevar a taxa de juros a partir de 2025.

É aqui que entra o confronto entre o governo Lula e a presidência do BC herdada do governo Bolsonaro. Desde janeiro de 2023, Campos Neto inicia ciclos de pressão sobre a política fiscal, exorbitando de suas funções como gestor do BC autônomo. O Presidente Lula reage, demarcando seu domínio sobre a agenda eleita nas urnas. Imprensa e Mercado reagem às falas de Lula, mas blindam as exorbitâncias políticas de Campos Neto com a justificativa de este agir tecnicamente. Passado algum tempo, Campos Neto recua e abre diálogo mais ameno com o governo. A imprensa rotula Lula de desequilibrado e condecora Campos Neto como defensor da credibilidade do BC.

Estes ciclos parecem orbitar uma tendência crescente. A escalada vai gradualmente fechando o cerco sobre o espaço de política econômica. O último ciclo se iniciou com a mudança da meta fiscal para 2025 para um resultado primário equilibrado. A partir daí, Campos Neto deflagrou novo ataque ao governo, apoiando-se em suposta deterioração fiscal para disseminar elevação de risco e dividir o Copom na reunião de maio de 2024, semeando a pausa nos cortes da Selic a partir da reunião de junho.

A estratégia transfere todo o ônus do ruído para o governo, seja no Ministério da Fazenda, seja na parte da diretoria do BC indicada por Lula. Retomando a hipótese acima, a Faria Lima e a imprensa passam pressionar por cortes nos gastos sociais, pausa na agenda de restauração da base tributária e pela indicação de um sucessor de Campos Neto que seja austero.

Neste contexto, qualquer fala do presidente que fuja ao figurino da submissão engorda os indicadores de risco-país e turbina a desvalorização da moeda e o salto das taxas de juros nos títulos mais longos. O mercado se alimentou da dissonância entre as falas tímidas do ministro da Fazenda sobre a viabilidade do arcabouço fiscal e as críticas duras de Lula para anabolizar a incerteza e montar posições especulativas contra a nossa moeda.

Vários economistas próximos a Lula avisaram-no de que persistir no enfrentamento apenas fortaleceria o ataque e causaria danos persistentes sobre a inflação, os juros e, eventualmente, o poder de compra dos salários e o crescimento do PIB. Como disse um conselheiro próximo a ele: a Presidência tem poder formal, mas o poder real está na mão do mercado.

Após recuar do embate, Lula participou da reunião de ontem da Junta de Execução Orçamentária e reforçou o poder de Haddad no esforço de estabilização fiscal. A reação do mercado foi imediata: o dólar despencou de 5,66 reais para 5,56 no mesmo dia, ajudado também por menor criação de vagas nos EUA – o que abre espaço para cortes eventuais na taxa de juros americana.

Haddad saiu da reunião e anunciou cortes de 25 bilhões de reais em gastos do ano que vem para que se cumpra a meta de déficit zero. Acalmados os ânimos, o mercado entendeu que estes cortes são insuficientes. Reinicia o ciclo. É cansativo!

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