Educação

A USP e as cotas

Documentário mostra a luta por cotas raciais e o preconceito estrutural da maior universidade pública do País

USP 7%|Estudantes pedem cotas na USP
|A história de quatro personagens traça o panorama da exclusão. usp cotas documentário negros racismo|usp cota negro negritude preconceito justiça racial igualdade ensino superior
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“Mostrei a carteirinha, entrei, e aí, quando foi para entrar no prédio, eu fui barrada. (…) Argumentei novamente qual era o motivo, que eu não podia compreender por que eu estava sendo barrada. E nesse momento tive a certeza do motivo.” O relato é da estudante de Saúde Pública Mônica Gonçalves, que no ano passado viu-se impedida de entrar no prédio da Faculdade de Medicina da USP, apesar de ter comprovado que era aluna da instituição. Negra, Mônica não demorou muito para perceber que estava sendo vítima de racismo.

Sua história é uma das quatro narradas no curta-metragem USP 7%, uma reflexão crítica sobre como a maior universidade pública do País vem tratando a questão da inclusão racial. “A partir do caso dela (Mônica), vemos como a USP está desacostumada com a presença de negros, que ela não é sequer reconhecida como aluna”, aponta Daniel Mello, jornalista e diretor da produção ao lado de Bruno Bocchini. Disponível em duas versões, uma de 15 e outra de 25 minutos, o filme procura expor o preconceito intrínseco à estrutura da universidade e como ele leva à ausência de alunos negros em suas salas de aula.

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Além do depoimento de Mônica, a história de três outros personagens ajuda a traçar o panorama de exclusão e preconceito vivenciado pelos alunos negros dentro da instituição. O cotidiano de Fernanda Moreira, vestibulanda à época das filmagens e filha de uma faxineira que trabalha na USP, mostra as barreiras enfrentadas para ingressar na universidade pública. Há ainda a história de dois militantes do movimento negro, Luís Carlos e Regina Lúcia, que trazem a perspectiva de como a luta por cotas foi crescendo até virar uma pauta recorrente na universidade. “Conhecemos todos a partir da pesquisa e da vivência no Núcleo de Consciência Negra. A Fernanda estudava no cursinho mantido pelo Núcleo e tinha uma bolsa, porque também trabalhava no atendimento durante o dia. O Luís e a Regina ainda frequentam as reuniões”, conta Mello.

O projeto começou a ganhar contornos por volta de 2012 quando, como repórteres, Mello e Bocchini acompanharam a discussão na universidade em torno do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp), então recém-lançado pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB). A iniciativa tem como meta a destinação de 50% das matrículas em cada curso e em cada turno das universidades públicas paulistas para estudantes que cursaram todo o Ensino Médio na rede pública. Dentro desse índice, um porcentual de, no mínimo, 35% deveria ser ocupado por negros, pardos e indígenas.

Na época, negros egressos de escola pública representavam apenas 7% dos alunos da USP, número que acabou batizando o documentário. “Esse número é importante não só porque mostra o número reduzido de negros, mas também a dificuldade dos alunos de escola pública de entrar na USP. No estado de São Paulo, 85% dos alunos estudam em escola pública”, explica Mello. Para os diretores, dentro desse panorama, a política de bônus adotada pela USP mostra-se insuficiente para a garantia da equidade racial. “Nas universidades federais e nos concursos públicos, já temos cotas. A USP resiste de todas as formas. O sistema de bônus aumenta o ingresso apenas nos cursos menos concorridos. Serve mais como argumento para resistir às cotas do que à inclusão de verdade”, diz Mello.

Entre outras discussões, o filme aborda também a fragilidade do discurso da meritocracia dentro de uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade de acesso, como é a brasileira. “Se você nasceu nas condições certas, tudo colabora para que você se dê bem, prospere. Sei que o aluno que entra na USP tem a sensação de que se esforçou muito, que conseguiu porque mereceu. Mas ele tem de entender que 90% da população só vai chegar aonde ele chegou com dez vezes mais esforço”, reflete Mello.

Vencedor de um edital lançado em 2012 pelo Ministério da Cultura em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, direcionado a cineastas negros, o documentário foi alvo de embargo por quase dois anos. Um promotor entrou na Justiça contra o governo federal, alegando discriminação. “Ele argumentou que era um privilégio. O mesmo tipo de argumento que costumam usar contra as cotas”, conta o diretor. Com essa ação, o andamento do edital ficou paralisado por todo o ano de 2013 e o fomento só foi liberado em 2014. “O que é um grande transtorno, porque, no momento que é confirmado o resultado, você começa a se preparar para produzir. Enquanto não sai o valor, também fica difícil contrair outros compromissos. Mas no final o Ministério conseguiu reverter a questão judicialmente.”

Segundo Mello, uma das principais propostas do filme é estimular a discussão da universidade por toda a sociedade. “Grande parte dos problemas que a USP enfrenta hoje é justamente por ser tratada como uma coisa exclusiva de quem está lá dentro, professores e alunos. Se a universidade realmente prestasse contas à sociedade, a crise financeira não teria chegado ao nível que está hoje. Muito menos teríamos de fazer uma CPI para descobrir os casos de estupro nos campi.”

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