Artigo

A greve dos técnicos das federais é tão justa quanto preocupante

Falta coragem do governo federal em conduzir um debate mais ousado e não dependente da linha do arcabouço fiscal

Professores, técnicos-administrativos e estudantes de universidades federais e institutos federais de ensino em greve fazem manifestação na Esplanada dos Ministérios. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Em março, os técnicos-administrativos em educação iniciaram uma greve federal por recomposição salarial e reestruturação da carreira. A pauta é modesta: reaver a perda do poder de compra corroído pela inflação, que acumula uma defasagem de mais de 40%. Para se ter uma ideia, nos últimos 10 anos, a categoria amarga seis sem qualquer reajuste, mesmo que a carreira tenha o menor piso salarial do executivo federal. Ainda assim, após 90 dias de paralisação, governo segue intransigente. A proposta que Lula coloca sobre a mesa é de 14%, parcelados até 2026, com reajuste zero neste ano. Não cobre sequer a inflação do período negociado, quanto mais as perdas históricas.

A greve é, portanto, justa – conselhos universitários de todo o país assinaram moções de apoio, inclusive. Mais do que necessária, ela desvela para uma crise de fundo que merece ser debatida. Este artigo pretende aprofundar os motivos pelos quais a paralisação ocorre e por que ela é importante não apenas para os trabalhadores da categoria, mas para toda a comunidade universitária e para o conjunto da sociedade.

De saída, convém desmistificar a ideia de que se trata de um conjunto de marajás. O piso da categoria é de 1,5 salário mínimo. Isso mesmo, um salário mínimo e meio. Embora sejam estratégicos para a ciência nacional, os técnicos-administrativos recebem o pior salário do Executivo. Os trabalhadores não faziam greve desde 2016 e, como os servidores públicos federais não têm data-base – período em que, ano a ano, trabalhadores e patrões negociam reajuste salarial que deve cobrir ao menos a inflação –, há uma perda objetiva do poder de compra. O salário é corroído e a greve é o único instrumento para reaver as perdas inflacionárias. Daí a paralisação.

O quadro é grave em si, mas é também o sinal de alerta de algo mais preocupante: não há nitidez sobre a razão de se ter universidades fortes. A falta de remuneração adequada de técnicos-administrativos e professores, assim como a precarização das bolsas estudantis e demais condições de permanência, apontam para uma crise estrutural das universidades enquanto instituição e sinalizam um vácuo de projeto de nação. Não à toa, as universidades públicas não têm fechado turmas com número máximo de alunos. Se não houver debate de país, não há por que ter universidade solida e trabalhadores valorizados. (De fato, se a tarefa da educação superior for cumprir um ensino acrítico e robotizado, qualquer “uniesquina” que funciona como impressora de diplomas está à altura).

O Brasil precisa falar sério consigo mesmo. Sem postura de soberania, sem produção intelectual autônoma, sem almejar industrialização orientada aos problemas nacionais e às necessidades concretas da população, o país seguirá sendo uma grande fazenda. Aí, sim, as universidades seriam dispensáveis. Falta coragem do governo federal em conduzir um debate mais ousado e não dependente da linha do Arcabouço Fiscal. Não há saída, o país carece de reformas estruturais: fortalecimento da educação, efetivação da estratégia de saúde na atenção básica, novos modais de mobilidade urbana, mecanismos de contenção de desastres climáticos, fortalecimento da agricultura familiar… e carece, sobretudo, se perguntar por que essas reformas não saem. É preciso dizer: ao não garantir a produção de ciência e tecnologia orientadas a suas tarefas históricas, o país paga um preço muito caro. Inclusive financeiro.

Esse custo pode ser exemplificado na área sanitária: a promessa de um Complexo Econômico e Industrial da Saúde ainda não saiu do papel, e o país segue com R$ 20 bilhões de déficit anual por importar insumos na área. Com mais investimento em pesquisa e desenvolvimento, o Brasil poderia ser autossuficiente em tecnologias sanitárias, fazer jus à missão do SUS e exportar insumos que hoje custam o equilíbrio da balança comercial, além de abrir horizontes de cooperação com países do Sul Global. Ou seja, mesmo do ponto de vista meramente econômico, as universidades em diálogo com a sociedade são um caminho para o Brasil gastar menos.

O governo Lula anunciou na última semana um PAC das Universidades no valor de R$ 5,5 bilhões: R$ 4 bi para as universidades e 1,5 bilhões de reais para os hospitais universitários, quase colapsados. Como todo número cheio de zeros, o valor sugere robustez; na prática, a medida não passou de uma suplementação pontual (não se trata de uma recomposição ano a ano) e de impacto limitado diante dos gargalos estruturais. No caso da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, por exemplo, existe a expectativa que o montante a ser recebido seja de 60 milhões, o que representa 5% da receita bruta anual. Apenas as obras urgentes e represadas têm demanda superior a isso para que se consiga executar ensino, pesquisa e extensão, sem qualquer reestruturação significativa.

Mas há dinheiro? Há. A começar pela opção do governo em reforçar repasses a setores políticos e econômicos que garantam sua sustentação política. Certo, mas para quê? Qual é o projeto a ser garantido por um cálculo de popularidade? Os educadores das universidades, linha de frente na defesa democrática e na produção de vacinas durante a pandemia, têm observado um governo cada vez mais recuado conceder aumentos generosos a categorias mais bem remuneradas (algumas de pendor bolsonarista, inclusive) e fragilizar a base social que o reconduziu ao Palácio do Planalto. E, novamente, para quê? Qual é o projeto em disputa?

Vale lembrar que os setores sociais que defendem uma educação pública de qualidade são os mesmos que defendem os direitos democráticos, e eles não esqueceram o caminho da rua. Na última sexta-feira 14, por exemplo, as mulheres coordenaram atos enormes em todo o país contra a PEC dos Estupradores. Existe base social disposta a brigar por mais democracia, por mais políticas públicas, por mais direitos sociais. Os estudantes e trabalhadores estão prontos para lutar por uma universidade mais forte, mas o governo precisa de ousadia. É justamente por não enxergar alternativa que estratos importantes da juventude e dos trabalhadores se desencantam e migram para a direita. Existe um conteúdo de fundo por trás da greve dos técnicos-administrativos e dos professores das universidades que está para além das demandas corporativistas.

A insuficiência da proposta ofertada é dramaticamente didática. Revela, por exemplo, que pode estar no horizonte do governo um processo de terceirização tal qual ocorreu nos hospitais por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que distanciou as instituições da função de ensino e pesquisa, e fez explodirem as queixas por assédio moral e más condições de trabalho. Vai na contramão de uma concepção de serviço público que dialogue com a população. Produz mais desencantamento, alimenta a percepção de que não há alternativa.

Por isso, é fundamental que as universidades deixem de ser consideradas um gasto vão. Elas não podem seguir dentro do Arcabouço Fiscal, que contingencia o financiamento das instituições e impedem a formulação de alternativas. É preciso olhar para a pesquisa como investimento. É óbvio, mas há que ser dito, porque Fernando Haddad e Simone Tebet aceleram mesmo diante de uma rua sem saída. Argumentam que o único modo de se atingir a meta do Arcabouço é quebrando o piso constitucional da saúde e da educação, algo que nem mesmo Paulo Guedes ousou cumprir.

O caminho é outro. Precisamos de debate público sobre os gargalos do país. Necessitamos de indicação estatal em pesquisa nas áreas estratégicas. Temos uma revolução democrática a fazer no Brasil, e as universidades estão no centro desse desafio. Recompor a carreira dos educadores das universidades federais (técnicos-administrativos e professores) é fundamental para reter talentos, criar cadeias de desenvolvimento e alavancar o país. Os técnicos-administrativos estão entre os atores-chave do desafio que o Brasil tem diante de si.

Lula veio a público no último dia 10 afirmar que é preciso coragem para acabar com a paralisação. O que nós temos a pedir do governo é o mesmo. A greve das universidades é um chamado ao governo a se mover, a se recentralizar, a se lembrar de que há um país para além das pressões do mercado e das chantagens do Centrão. É uma oportunidade para Lula se conectar com as demandas do povo, com seus problemas objetivos. Não tem cálculo eleitoral que justifique ser conivente com a falta de soberania pelo simples motivo de que um atalho, só é de fato um atalho, se levar ao destino desejado. Caso contrário, é um caminho a ser corrigido.

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