Artigo
Lobby do Batom, 35 anos depois
Grupo de mulheres que mudou radicalmente a democracia brasileira foi apagado da história
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Se você me permite, queria começar este artigo imaginando uma cena. Ou melhor, duas.
Cena 1: Você é uma mulher casada, tem 35 anos, dois filhos pequenos e dá duro para ocupar uma posição relevante na redação de um jornal. Um belo dia, você vai trabalhar e é sumariamente demitida. Seu chefe, então, mostra uma carta: “Sinto dizer, mas seu marido lhe demitiu do jornal por você não cumprir suas tarefas em casa. Passe no RH.”
Cena 2: Depois do divórcio, você inicia um novo relacionamento e, sem planejar, se descobre grávida. Quando o bebê nasce, você olha a certidão e percebe que seu nome – o nome da mãe! – não está lá. A criança, por lei, foi reconhecida apenas como filha do seu namorado. Se não há casamento, você, como mãe, não existe para o Estado.
São cenas assustadoras, não são? Poderiam fazer parte de uma narrativa distópica, talvez O conto da aia. Mas e se eu disser que tudo isso aconteceu aqui, no Brasil, há apenas 35 anos? Ah, você não sabia? Não se preocupe, nem eu. Não nos ensinaram que esses direitos tão básicos, como o de ser demitida somente pelo seu empregador ou ter seu nome garantido na certidão de nascimento do filho (ou filha) foram conquistados com a Constituição de 1988. E, pasme (contém ironia), não foram homens que fizeram isso por nós.
Foram mulheres, claro, muitas. Acadêmicas, trabalhadoras domésticas e rurais, deputadas, advogadas, feministas, professoras, freiras… Duas mil mulheres.
O Lobby do Batom – nome controverso imposto pelos homens e acatado a partir de uma estratégia de comunicação – juntou centenas de legisladoras e ativistas que, depois de ouvir essas mais de duas mil brasileiras, redigiram a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”. Eram cerca de 70 reivindicações, entre elas o direito à licença maternidade, a destituição do homem como chefe da vida conjugal, a permissão de que mulheres fossem proprietárias de terras e o uso do substantivo “mulheres”, ao invés de apenas “homens”, no texto da Carta Magna. Essa inclusão, aliás, pode até parecer irrelevante, mas permitiu que, a partir de então, fossem desenhadas políticas públicas específicas para o público feminino.
No total, 80% das demandas entraram no texto final da nossa atual Constituição – não por acaso conhecida como “Constituição cidadã” e até hoje tida como uma das mais democráticas da América Latina.
Não pense, porém, que esse era um grupo homogêneo e livre de conflitos. Pelo contrário: era plural e diverso, formado por mulheres da esquerda à direita, negras e brancas, muitas delas acadêmicas, outras vinculadas a movimentos sociais. Um caldeirão de ideias e vertentes, mas que tinha um norte em comum: atender às necessidades e direitos da população feminina, impedindo que uma Constituição pudesse ser escrita sem a participação das mulheres.
Eram mulheres extraordinárias como a deputada federal Benedita da Silva, as ativistas Lélia Gonzales e Sueli Carneiro e artistas e intelectuais do porte de Ruth Escobar, Jacqueline Pitanguy e Schuma Schumaher.
Agora, depois de sabermos tudo isso, é impossível não ficar com uma pergunta ecoando na cabeça: como é que a memória da atuação dessas mulheres, protagonistas de um momento político brasileiro sem igual, simplesmente desapareceu da narrativa histórica oficial? Não é difícil entender: tem a ver com a ideia – a imaginação vigente – de que o poder, a política e a democracia são construídas por homens, de preferência brancos.
Nestes 35 anos da Constituição, temos, como sociedade, o dever de conhecer e perpetuar as conquistas do Lobby do Batom. Só vamos construir futuros igualitários se formos capazes de imaginá-los – e resgatar uma história do passado que explica o presente é uma maneira de fomentar novas imaginações políticas. Assim seremos enfim capazes de desenhar uma realidade em que as mulheres podem ser lideranças democráticas inquestionáveis.
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