Artigo
Quantos mistérios existem no silêncio de uma mulher negra?
Sistema possui várias ferramentas para silenciar as mulheres negras que ousam ocupar protagonismos
![](https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2020/10/Mascara-Anastacia.jpg)
“O peso do silêncio vai acabar nos engasgando”. Frase de Audre Lorde que me atravessa! Falar ou calar é um dilema constante. Há situações em que escolhemos o silêncio, outras falar e inúmeras somos violentamente silenciadas. O silêncio está sempre presente em nossas vidas.
Apesar desta sociedade não ensinar a estarmos atentas ao que sentimos e observar os sinais ao nosso redor, mulheres negras aprenderam com suas ancestrais a recorrer aos instintos e saberes que herdaram, quando precisam decidir entre calar ou falar e sobretudo, ouvir os sinais do silêncio.
Quando esperam sorrateiramente de nós que falemos, silenciar- se pode ser uma estratégia. Não o silêncio que sufoca e quando rompido, produz a cura e sim, o das águas calmas de um rio de profundidade não aparente.
O silenciar por opção, frustra quem ardilosamente deseja arrancar de nós o som. Manter o que pensamos em segredo diante de emboscadas exige discernimento e lucidez. Minha ancestralidade sobreviveu também por guardar segredos. Sabiam que precisavam acessar o trabalho na cozinha para envenenar a família escravagista. Através da dança, música e manuseio da plantação, confundiram opressores.
Outro silenciamento é o epistemicídio, que Sueli Carneiro descreveu, que se configura “pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar”. Em outras palavras, o epistemicídio acontece em toda tentativa de silenciar, anular, subalternizar, apagar e invizibilizar saberes não-hegemônicos.
Em dezembro de 2016 eu também estive imersa em uma situação que ilustra as estratégias utilizadas para silenciar mulheres, principalmente negras que ousam ocupar o protagonismo.
Era o encerramento de uma gestão de 4 anos e pessoas que estiveram na liderança apresentaram para uma plateia composta por gestoras das escolas da região, a maioria de mulheres não negras, as ações que realizadas durante o período. Eu liderava a Supervisão Escolar.
As demais lideranças que não eram negras, utilizaram o tempo de fala sem serem questionadas. Na minha vez, destaquei o pioneirismo da Supervisão ao priorizar as relações de gênero e raça no plano de trabalho. Destaquei o legado que deixaria, na esperança que a continuidade fosse preservada, o que não ocorreu quando foi sucedida no cargo por uma mulher não negra. Encerrei citando Frantz Fanon em os Condenados da Terra: “Todo expectador é um covarde ou traidor”.
Posteriormente, o cerimonialista convidou ao palco profissionais que se aposentaram para homenagens. Dentre eles, estava um supervisor que me causou muitos problemas. Ele não iniciou seu discurso agradecendo e sim, discordando da frase de Fanon citada por mim. Prepotentemente disse que nunca havia lido o autor e discordava totalmente. Seguiu desqualificando, afirmando que ele não era covarde, nem tão pouco traidor e continuou falando de si.
Quando terminou, foi ovacionado por alguns. Me lembro de ver os rostos de supervisoras escolares não negras que também foram resistentes a minha liderança, aplaudindo de pé. Novamente fui convidada para retornar ao palco e receber flores. Percebi o silencio e olhares atentos, como se esperassem uma reação.
Escolhi silenciar. O que dizer para uma plateia composta por gestores, grande parte não negros, que ovacionaram um homem branco, que falando de si, revelou sem constrangimento ignorância ao desconhecer a obra brilhante de Fanon, citado pela única mulher negra que esteve no palco?
Descortinar epistemicídio, racismo institucional e a misoginia? Dizer que o prefácio de Os Condenados da Terra foi escrito por Jean Paul Sartre, um branco? Quem sabe assim, respeitariam o trecho citado? Afirmar que a discordância aplaudida era apenas um recorte dos incômodos por serem liderados por uma mulher negra? Que aquele foi um comportamento que comprovava o quanto a branquitude é privilegiada mesmo revelando mediocridade e ignorância?
O ciclo naquele local estava encerrado para mim e eu sabia que eu, diferente do discordante e sua plateia emocionada, não precisava dizer mais nada. Sabia que no currículo das melhores universidades, não só deste pais, se faz referência a escrita antes silenciada de Fanon e de outras intelectuais negras (os). Era desnecessária uma resposta para um homem branco, sexagenário com medo. Penso que pessoas assim, poderiam aprender com o samba de Zeca Pagodinho diante do que não conhecem:
Você sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar. Mas enquanto não conseguem se conter, seguimos com os nossos segredos. Sabemos utilizá-los diante de covardias e traições. Alguns seres humanos agem como certas hienas que emitem sons para que o bando as reconheçam, quando se sentem ameaçadas.
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