A Redoma de Livros por Clarissa Wolff
“A literatura Ă© como a vingança: deve ser produzida a frio”
O premiado autor CristovĂŁo Tezza fala sobre “A tirania do amor”, seu novo livro
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“Todo o sistema editorial brasileiro está no meio de um furacão de transformações. Enquanto isso, a literatura de ficção tornou-se quase um nicho de mercado”, diz Cristovão Tezza, em entrevista à CartaCapital. Estamos conversando sobre seu novo livro, “A tirania do amor”, que traz o Brasil da Lava-Jato como pano de fundo.
Logo na primeira página, o racional Otávio decide abdicar do sexo ao descobrir que sua mulher está envolvida com outro homem. A partir daĂ, acompanhamos um dia na vida do economista, em que telefonemas com o filho esquerdista e almoços com a filha amada se misturam ao veloz fluxo de pensamentos que nos leva a lembranças, associações e cálculos matemáticos – e a filosofias de vida baratas em um curioso livro de autoajuda.
Confira abaixo a entrevista completa.
A TIRANIA DO AMOR, CristovĂŁo Tezza
Todavia Livros, 2018
176 páginas
R$49,90
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A literatura tem função social?
A literatura Ă© inseparável da sociedade em que vive. Nossa linguagem cotidiana Ă© inteiramente social, o mesmo acontece com a literatura. Nesse sentido, a literatura age em alguma medida sobre a sociedade, ou pelo menos entre seus leitores. Mas Ă© um processo aleatĂłrio, difĂcil de medir ou definir, na medida em que Ă© uma manifestação espontânea e subjetiva do escritor, um espaço livre e sem pauta prĂ©via.
A arte pode discutir polĂtica? Ela Ă© capaz de gerar mudanças?
A arte faz o que quer – esse Ă© o espĂrito básico do impulso artĂstico. Quanto Ă literatura, o meu terreno, ela Ă© uma linguagem que usa todas as linguagens sociais – jornalismo, polĂtica, filosofia, religiĂŁo, sociedade, ciĂŞncia, fĂ©, etc. – sem se confundir com nenhuma delas. A ficção representa visões de mundo atravĂ©s de personagens, sob o filtro do narrador. Assim, a polĂtica tambĂ©m Ă© um tema literário. Hoje, Ă© raro que uma obra literária gere mudanças pontuais no mundo, atĂ© porque a literatura perdeu o “horário nobre” que já teve em outros tempos, como no sĂ©culo 19. Mas, em escala menor, ela certamente modifica seus leitores mais sensĂveis.
Eu li que “A tirania do amor” surgiu da vontade de escrever sobre um autor de autoajuda e isso me fez querer saber mais: por que autoajuda? E mais ainda: por que um autor de autoajuda que despreza autoajuda?
Para mim, são um tanto insondáveis os motivos que me levam a escrever um romance. No caso, um dos motes seria um personagem que escreve um livro chamado “A matemática da vida” como uma aposta que havia feito com a mulher, do tipo “eu também sou capaz de escrever um best-seller de autoajuda”, uma brincadeira. Meus romances nascem de fragmentos de imagens, ideiais avulsas, breves inspirações. Assim que começo a escrever, as ideias vagas iniciais vão ganhando corpo, presença, espaço, tempo, linguagem, e os personagens crescem. A ideia não era satirizar a autoajuda, mas mostrar a aposta com a mulher e ao mesmo tempo o conflito entre a “matemática da vida”, inteira racionalizada, e a vida emocional real que destroça o personagem central. Que, aliás, chamado Otávio Espinhosa, era um leitor da célebre “Ética”, do filósofo Baruch Spinoza, uma das obras fundamentais do racionalismo moderno.
O mote do livro Ă© o casamento se despedaçando, mas nĂŁo leio o livro como um fim de relacionamento. Para mim, Ă© um livro sobre uma sĂ©rie de desilusões – o casamento, o filho prĂłdigo, a empresa quebrando. Acho que isso conversa bastante com o cenário de desesperança que andamos vivendo no campo polĂtico. Queria entender se vocĂŞ vĂŞ desse jeito tambĂ©m, se foi planejado, e como esse clima de decepção invadiu a narrativa.
Quando eu escolhi a profissĂŁo do personagem, a partir de sua vocação genial para a matemática – ele Ă© um economista -, imediatamente o Brasil de hoje entrou em cena de uma forma acachapante. É uma atmosfera polĂtica, social e econĂ´mica asfixiante, de que ele nĂŁo consegue escapar, embora a sua cabeça esteja o tempo focada estritamente nos seus problemas pessoais e familiares. Mas eu nĂŁo acho que seja um livro inteiro desesperançado. A cena final, com DĂ©bora, abre a ele uma porta de sobrevivĂŞncia emocional. Pelo menos eu sinto assim. Mas um livro de ficção sempre diz mais do que o autor quis dizer.
O protagonista Ă© um “Mozart” que se torna ordinário na vida adulta. Esse sentimento de ex-prodĂgio Ă© uma coisa que me atrai muito. Primeiro porque se fala o tempo todo de Millennials (minha geração) que crescem acreditando que sĂŁo especiais pra ver que nĂŁo o sĂŁo, depois porque acho que essa promessa de genialidade nem sempre se cumpre. Isso foi um processo consciente na sua escrita? Como vocĂŞ vĂŞ essa questĂŁo?
O fracasso da precocidade é um tema fascinante. Para cada Mozart real, há mil outros que ficam pelo caminho. Tem um toque de compensação pessoal (quem sabe vingança, diria um psicanalista…) na criação deste personagem. Sempre fui péssimo em matemática. E jamais fui precoce em nada – a ficha sempre demora a cair na minha cabeça. Só depois dos 30 anos comecei a escrever coisas que ficavam mais ou menos em pé. De qualquer forma, esta fratura entre o sonho prometido pelo talento inato e a dura realidade subsequente é um motivo literário muito rico.
VocĂŞ acha mais difĂcil escrever em conexĂŁo com a atualidade, sem o distanciamento que supostamente permitiria uma análise imparcial? Ou isso nĂŁo faz diferença?
Faz diferença. A distância Ă© fundamental. Exemplo: tive um filho com sĂndrome de Down em 1980 e sĂł pensei em escrever sobre este tema mais de 20 anos depois. Sem esta distância, jamais teria escrito “O filho eterno”. Se tivesse tentado escrever a quente, seria um fracasso total, um confessionário furioso ou sentimental – e má literatura.  A literatura Ă© como a vingança: deve ser produzida a frio.Â
Mas no caso de romances como “O professor”, “A tradutora”, ou, mais ainda, “A tirania do amor”, a atualidade polĂtica nĂŁo Ă© o tema; Ă© apenas o pano de fundo. É uma diferença notável. O personagem nĂŁo Ă©, digamos, um deputado ou um professor dando opiniões diretas sobre o governo Temer ou o momento polĂtico (Aliás, o nome do Temer nem aparece). Eu criei uma “hipĂłtese de existĂŞncia” – Otávio Espinhosa -, num dia de crise pessoal e profissional. O resto Ă© atmosfera, ambiente, circunstâncias.
Sei que Ă© muito mais difĂcil lidar com o instante imediato. Por isso, nĂŁo localizei um dia especĂfico e nem fatos concretos. No “dia” do romance, há referĂŞncias a fatos de diferentes momentos de 2017. E, detalhe importante, a linguagem do livro trabalha com uma fusĂŁo de tempo e espaço que me livra de um realismo mais puramente documental. Mas Ă© um risco que me atrai: tratar o instante presente com uma perspectiva psicologicamente mais aberta.
O protagonista, extremamente racional, decide abandonar o sexo depois de uma decepção amorosa. Existe aqui um embate entre o instintivo e emocional versus o racional e pragmático? Você vê o sexo como inimigo da razão?
Digamos, poeticamente, que o sexo é um instante de transfiguração irracional da vida. Se é inimigo da razão, isso depende da cabeça do usuário. De um modo ou outro, temos de lidar com ele, com sua perigosa autonomia. No caso do livro, Espinhosa decide “abdicar” do sexo como uma reação quase instintiva ante a humilhação que sente pela traição da mulher. Ele tenta enquadrar o fracasso, tratando-o com uma frieza racional. Não é fácil.
O mergulho dentro do psicolĂłgico do personagem Ă© poderosĂssimo. Como foi construir essa voz narrativa com esse tipo de conexĂŁo entre temas, passado/presente/futuro, ideias, enfim?Â
Digo sinceramente: não sei. A essa altura, a minha linguagem já vai se fazendo meio que por instinto. De um momento em diante,  talvez depois de “O fotógrafo” (2004), esse aspecto de construção intimista da cabeça do personagem e a criação de um narrador que o acompanha de perto sem se identificar completamente com ele foi constituindo meu estilo, meu modo de fazer literatura.
Com “O filho eterno” essa rede de conexões se ampliou. Com “Um erro emocional”, acho que fui um passo adiante. Nos seguintes, “O professor” (que eu considero, ao lado do “Tirania”, o meu livro mais bem realizado tecnicamente) e “A tradutora”, esse estilo já se tornou perfeitamente natural para mim.
E, enfim, o amor Ă© sempre tirania?Â
Desconfio que sim.Â
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