A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Racismo e literatura: deve ser chato ser o Paul Beatty

Como afirmou em sua passagem pela Flip, ele seria o único que poderia ter escrito seu romance urgente, “O vendido”

Beatty, vencedor do Man Booker Prize
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O livro de Paul Beatty, O vendido, publicado pela editora Todavia e traduzido por Rogério Galindo, discute questões raciais. Ele é negro. Então, em todos os lugares a que vai, é sempre obrigado a responder perguntas cretinas de entrevistadores brancos. Na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, a pergunta foi a seguinte: “Você acha que um branco poderia escrever esse livro?”

Isso porque o livro incomoda. O protagonista, cujo sobrenome é Eu e o apelido é Bombom, foi criado por um pai cientista social que fazia experimentos controversos no próprio filho. O pai morre com um tiro e a comunidade do distrito fictício de Dickens, na Califórnia, espera que o protagonista assuma seu lugar como intelectual de questões de raça. O que acontece é um pouco diferente: ele reinstaura a segregação racial e cede ao pedido de Hominy, o único ator vivo da antiga série infantil Os Batutinhas, para aceitá-lo como escravo.

Considerado uma sátira por muita gente, numa tentativa de aliviar os risos nervosos que a história suscita, o romance é todo levado por esse humor ácido e traz referências que vão de Tolstoi a Wu Tang Clan.

A gente tá falando de um cara que, no discurso de agradecimento pelo Man Booker Prize, pegou o microfone e agradeceu a Deus pela apropriação cultural: é um autor que entende muito bem que, até quando autores negros são agraciados com prêmios de respeito, existe uma certa fetichização por parte de jurados ou do público branco, uma noção um pouco colonizadora de que são esses os salvadores esclarecidos e capazes de dar voz a um autor negro, uma ansiedade por compensar a dívida eterna do nosso passado escravocrata. E que, sejamos honestos, nunca poderá ser paga.

O VENDIDO, Paul Beatty
Editora: Todavia
Tradução: Rogério Galindo
Páginas: 320
Preço: R$ 54,90
E-book: R$ 36

 

 

O livro, que não se importa nem um pouco em agradar ou até mesmo conversar com a audiência branca, traz inúmeras provocações – do intelectual Foy Cheshire que decide reescrever clássicos da literatura em versões politicamente corretas (Médias Esperanças de Dickens e O Grande Negatsby de Fitzgerald) até o personagem de Hominy que, mesmo fazendo parte de uma série de papeis estereotipados e racistas, assiste aos episódios de Os Batutinhas buscando discutir a questão artística da sua própria atuação.

A revista New Yorker coloca O vendido ao lado do álbum To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, classificando os trabalhos como “tentativas de lutar contra o falso triunfo de uma suposta nova ordem pós-racial” em que a maior potência do mundo teve um presidente negro. Faz sentido que, na FLUP (Festa Literária das Periferias), Beatty tenha evocado Jay-Z para explicar um pouco o que ele quer falar: “Negro rico, negro pobre, negro da cidade, negro do campo” continua negro. Ele fala que não dá pra se livrar do estigma da cor da pele, ao mesmo tempo em que não existe uma única verdadeira negritude.

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Também não existe nada engraçado em escravidão, no racismo ou na segregação social, mas o humor de Beatty não tira sarro disso. No lugar, ele ironiza essa geração que discute o “fim do racismo” sem ironia, e ele ri de forma descarada da situação atual – aliás, nem atual, isso tudo é pré-Trump, imagina o que seria esse livro agora! – da política, do entretenimento, dos movimentos sociais, das tentativas de colocar um band-aid na ferida histórica que é a opressão racial.

É um livro arriscado que provavelmente vai ofender muitos leitores, mas que não tem medo de falar uma verdade capaz de ultrajar a nossa cultura.

Isso é algo que o hip hop faz muito bem, e há muito tempo. Nos anos 1980, o N.W.A. criou provavelmente a música mais corajosa até hoje como resposta à violência policial: Fuck Tha Police fez o FBI escrever uma carta para o grupo e para a gravadora criticando a letra por “representar a polícia de forma equivocada”, e foi censurada na Austrália. Kanye West também é um letrista incrível para criar provocações corrosivas que poderiam muito bem estar em O vendido, como a pergunta que ele faz em Gorgeous (My Beautiful Dark Twisted Fantasy, 2010, Roc-A-Fella Records): “O que é um Beatle (besouro) negro de qualquer jeito, a porra de uma barata?”

O vendido é uma obra-prima do humor, mas é da arte também. As reflexões sobre identidade, opressão e sobre a própria literatura não deixam dúvidas de que esse é um livro que vai ficar para a história como um clássico. É um livro que deve ser lido por todo mundo e nunca pode ser esquecido.

Se na literatura é difícil encontrar alguma outra obra contemporânea que consiga ser colocada no mesmo lugar que essa, é porque o livro faz discussões em uma narrativa espetacular que essa forma de arte, ainda bastante restrita na camisa-de-força de um elitismo que julga o que é bom ou ruim com preceitos antiquados, ainda tem dificuldade de digerir.

Nas artes plásticas essas ideias foram refutadas de forma enfática por Duchamp há um século. Na música, se o rock foi no pós-guerra o responsável pela dita contracultura capaz de gerar movimentações sociais e de se fazer repensar a arte, há muito tempo esse posto é do hip-hop. Agora é Beatty, talvez a voz mais inteligente da literatura no mundo hoje, que consegue condensar tudo isso em 300 páginas muito, mas muito afiadas.

Até porque, como ele deixou claro ao responder aquela pergunta cretina na FLIP, ele é “o único filho da puta que poderia ter escrito esse livro.” 

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