A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Michel Laub: ‘Em algum nível todo mundo linchará ou será linchado’

O autor fala de seu romance mais recente, “O tribunal da quinta-feira”, além de intolerância, sexualidade, privacidade – e literatura, claro

“Acho que a saturação das tretas e linchamentos virtuais poderá ter um efeito benéfico inesperado"
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Quando estava lendo “Ulysses”, de James Joyce, “O Vendido”, de Paul Beatty, caiu nas minhas mãos. Interrompi a leitura do primeiro para mergulhar no segundo e esse embate entre clássicos e contemporâneos, que acompanha há muito tempo minhas reflexões literárias, subiu no palco da minha vida outra vez (e gerou até vídeo de discussão).

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 É raro encontrar obras que conseguem traduzir a realidade em arte, e a ânsia da busca pela “voz de uma geração” já mostra o quanto esse tipo de obra é necessária. “O tribunal da quinta-feira”, romance mais recente de Michel Laub, é uma dessas obras preciosas.

 

“Sempre escrevi sobre identidade, o que é uma forma de escrever sobre tolerância e intolerância – o choque entre aquilo que somos e aquilo que os outros esperam que sejamos. O “Tribunal” é um livro sobre isso, antes de mais nada,” ele explica em entrevista a CartaCapital.

Em um mundo onde os protestos chocantes em Charlotesville acontecem, onde uma teórica de gênero e sexualidade é recebida de forma assustadora em São Paulo, a tolerância é uma discussão urgente.

O livro conta a história de José Victor, que descobre, de supetão, que está sofrendo uma vingança da ex-mulher: a mágoa da traição faz com que ela edite de forma cruel mensagens privadas do protagonista e as exponha na internet.

Os trechos, selecionados para criar o maior impacto negativo possível, trazem piadas grotescas sobre aids trocadas com seu melhor amigo (que, embora mantenha em segredo, é HIV positivo e usa esse tipo de humor sádico como mecanismo de defesa). A partir daí, uma geração ignorante de justiceiros superficiais sobe no palco do Facebook para exercer sua função de divindade moral e José Victor é, pouco a pouco – ou melhor, muito rapidamente – julgado culpado pelo seu círculo de conhecidos.

“Sempre tive consciência, por exemplo, de que o narrador em primeira pessoa que usei era parcial, e que de algum modo eu precisaria aderir a ideias que não eram as minhas, porque senão o livro não teria eficiência narrativa (afinal, trata-se de alguém fazendo uma espécie de defesa num tribunal metafórico)”, fala Laub.

“Achei que passar algo daquele clima horrível dos anos 1980 e 1990 em relação ao sexo podia colaborar com a verossimilhança e força do livro. E as discussões sobre sexualidade dos 1980 têm algo das discussões sobre sexualidade de agora.”

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É verdade. Além da sexualidade, questões sobre privacidade também começam a entrar em cena quando se pensa que cada vez mais gerações crescerão acostumadas à exposição online e que os grandes do mundo digital – Google, Facebook – retém todas as nossas informações em seus bancos de dados.

Mas no privado, todo mundo tem um lado grotesco. “O conceito de privacidade do protagonista (que é o da minha geração) mudou radicalmente nos últimos anos. Então, este também é um romance sobre isso – sobre se sentir obsoleto aos 43, quando em gerações anteriores este podia ser o ápice de uma vida profissional e afetiva. Isso certamente é um avanço para algumas pessoas, para outras não. Então, é um choque de perspectivas que me parece algo muito contemporâneo, o que sempre dá boa ficção,” explica Laub.

macaenvenenada O TRIBUNAL DA QUINTA-FEIRA, Michel Laub

Companhia das Letras, 2016

184 páginas

R$37,90

 

 

 

E é, afinal, humano sentir e expor sentimentos vergonhosos, explorar a própria crueldade sem controle do superego. Se por um lado o próprio julgamento pessoal do que não é adequado para se expor publicamente já denota uma visão do indivíduo de que aquilo é errado moralmente, por outro temos a esperança de que, mesmo errando, todos temos a oportunidade de nos tornarmos pessoas melhores. Como, então, é possível se aceitar esse tipo de julgamento moral que, no fundo, também tem sua própria hipocrisia?

“Como autor, essas considerações sobre os personagens estarem certos ou não nos seus pequenos atos são interessantes, mas menos do que aquilo que o livro tenta passar como um todo – uma sensibilidade mais abstrata, que tem a ver com um certo espírito de época,” diz Laub, que não quer trazer as respostas, muito pelo contrário: são os questionamentos o que ele traz, nas quase duzentas páginas de uma narrativa primorosa.

“Quanto ao futuro, ao menos para quem é criança hoje, acho que a saturação das tretas e linchamentos virtuais poderá ter um efeito benéfico inesperado. Em algum nível todo mundo linchará ou será linchado, ou então conhecerá alguém próximo numa das duas situações, ou verá isso acontecer tantas vezes que a experiência será menos dramática e traumática do que achamos em 2018. É o otimismo possível quanto ao tema, já que esperar mudanças via controle da tecnologia ou algo assim é uma hipótese ruim porque nos tira a liberdade. E esperar que o ser humano mude e essas coisas deixem de ocorrer é ingênuo.”

O contraponto entre os anos 80 e a atualidade também serve para colocar em cheque todas essas questões e a mistura de passado e presente está em outros dos seus romances: “O diário da queda” e “A maçã envenenada”. “Hoje sinto um esgotamento parecido com o modelo que adotei nestes últimos livros – “Diário”, “A Maçã Envenenada” e “O Tribunal”. Foi algo que funcionou para expressar o que eu precisava naquele momento, mas daqui para frente quero fazer de um jeito diferente. Se não nos temas, ao menos na forma de narrar,” ele fala.

tribunal

A MAÇÃ ENVENENADA, Michel Laub

Companhia das Letras, 2013

120 páginas

R$39,90

 

 

 

Sobre “A maçã envenenada”, explica: “Eu queria um romance sobre um fã, essa foi a primeira ideia: por que você gosta tanto de algo que não faz parte da sua vida diretamente? Dá para fazer um paralelo entre essa paixão por uma pessoa distante (ou pela arte dela) e por uma ideia política, por exemplo. Novamente é o tema da identidade, que neste caso tem uma pegada romântica bem contemporânea também, no sentido de uma idealização ou ideologização da realidade. O Kurt Cobain encarna esse romantismo por causa da biografia trágica dele, o herói puro que sucumbiu aos excessos midiáticos da sociedade contemporânea e tal. Escolhi tê-lo como referência por causa disso, não pelo meu gosto pessoal. Eu curtia e curto Nirvana, mas não era a minha banda preferida na época.”

E por fim, entrega: “Meu projeto desde o fim do “Tribunal” é ficar um tempo sem escrever ficção. Como falei, acho que esse livro encerrou um ciclo, e para começar outro preciso retomar o fôlego. Tem sido bom. Talvez eu comece a escrever no segundo semestre, mas minhas ideias a respeito são um pouco nebulosas ainda. Sobre dicas: cada um acaba encontrando seu caminho se tiver talento. A única coisa objetiva aí é a necessidade de ler e de gostar realmente de literatura – sem isso, o talento não consegue ser expressado com voz própria.”

 

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