Augusto Diniz | Música brasileira

Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.

Augusto Diniz | Música brasileira

Chico Buarque chega aos 80 anos com uma obra grandiosa, fundamental e coerente

Cantor, compositor e escritor celebra o aniversário nesta quarta-feira 19 como o mais importante artista brasileiro vivo

Foto: Divulgação
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“Fazer um gol de bicicleta, dar de goleada/ Deitar na cama da amada e despertar poeta/ Achar a rima que completa o estribilho/ Fazer um filho, que tal?/ Pra ver crescer, criar um filho/ Num bom lugar, numa cidade legal/ Um filho com a pele escura/ Com formosura/ Bem brasileiro, que tal?/ Não com dinheiro/ Mas a cultura”.

O trecho poderia ser de alguma canção crítico-social de Chico Buarque dos anos 1960 e 1970; de uma  de suas músicas crônicas dos anos 1980 e 1990; de algum de seus romances, desde Estorvo (1991) até Essa Gente (2019); ou mesmo de uma de suas peças teatrais, como Ópera do Malandro (1978). Poderia, ainda, ser de uma letra musical da linha mais romântica, composta por ele desde sempre.

Os versos, no entanto, são da mais recente música inédita de Chico, lançada em 2022, de nome Que tal um samba?, disponibilizada nas plataformas digitais pouco antes de uma das eleições mais acirradas que este País já viveu.

A letra conversa com a história de seu autor. Foi grandioso ao evocar o que pensa mais uma vez, mesmo com toda a ameaça que poderia receber caso o pleito desse errado cerca de quatro meses depois. Chico Buarque é isso: fundamental, em um tempo enorme de nossa história.

Recuando no tempo para muito antes de Que Tal um Samba?, a música que marcou seu início de carreira carrega um nome semelhante: Tem um Samba, apresentada em 1964. “Tem mais samba nas mãos do que nos olhos/ Tem mais samba no chão do que na lua/ Tem mais samba no homem que trabalha/ Tem mais samba no som que vem da rua.”

Chico já era imenso no começo de tudo, há 60 anos.

Da singela composição mostrada pouco tempo depois, A Banda, interpretada por Nara Leão (vencedora do Festival da Record de 1966), até a peça Roda Viva, encenada em 1968, as nuances desse múltiplo artista foram escancaradamente expostas.

Roda Viva foi a sua primeira manifestação contundente como dramaturgo aos mecanismos do sistema, em meio a uma produção de canções de encontros e desencontros, como Noites dos Mascarados, Com Açúcar com Afeto, Quem Te Viu Quem Te Vê, entre outras, indo até Apesar de Você (1970), uma espécie de hino pela liberdade na ditadura militar, que ecoou novamente nos anos recentes, em outro tipo de governo autoritário.

Mas foi em 1971, de volta do autoexílio na Itália, que Chico lançou o álbum que representaria a primeira síntese de seu trabalho. Construção é um misto de crônica e crítica ao regime, um dos mais significativos registros fonográficos já feitos, com versos monumentais (“Morreu na contramão atrapalhando o sábado”) e melodias melodramáticas à altura.

O poder crítico continuou, com a criação do compositor Julinho da Adelaide para driblar a censura, especialmente com a música Acorda, Amor, gravada no álbum de 1974 Sinal Fechado. Um ano depois, ele apresentaria a peça Gota D’Água, escrita com Paulo Pontes, sobre uma tragédia brasileira.

A progressão dessa fase mordaz surge no disco Meus Caros Amigos (1976), com O Que Será? (“Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas”), de letra reflexiva.

A peça Calabar, desenvolvida com Ruy Guerra, encenada em 1979 depois de ser proibida em 1973, impõe seu herói contra a ótica do colonizador. Veio ainda a Ópera do Malandro (1978), o Chico vadio.

Em Almanaque (1981), um salto, no qual se enquadram também os álbuns Paratodos (1993) e As Cidades (1998), alicerçados em metáforas, circunstâncias sociais e o cotidiano, assim como Carioca (2006) e Caravanas (2017), o último de inéditas.

Na literatura, ressaltam-se os seus romances Estorvo (1992), Benjamin (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014) e Essa Gente (2019), de imaginações e inquietações pessoais, em um universo quase de contrassenso, mas mais próximo do real do que se presume.

Aqui estão apenas as obras mais citadas e premiadas, mas há muitas outras criações fonográficas e trabalhos para o cinema e o teatro de redundante qualidade, como a canção-tema para o filme Bye Bye Brasil (1979), com melodia de Roberto Menescal, que mostra uma epopeia ao Brasil profundo.

Toda a produção de Chico Buarque é superlativa, tem um enigma, uma relação com o momento, e de alguma forma se intercala à história, incrustada de aspectos e influências socioculturais. É possível iniciar muitas narrativas sobre este País fazendo exemplificações ou relações com uma das obras desse gênio.

Tudo de Chico é poético, profundo, provocador e essencialmente cultural, capaz de mexer com um número expressivo de sensações e emoções do ouvinte, do leitor, do observador, do ser humano minimamente sensível. É algo fenomenal e sem paralelo no mundo artístico brasileiro.

Chico Buarque completa, nesta quarta-feira 19, 80 anos com a insígnia de maior artista brasileiro vivo.

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