Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Eleições na França, novos sinais de alerta

A vitória de Marine Le Pen consolidaria o populismo de direita no cenário internacional. O novato Benoit Hamon desponta como a esperança da esquerda

Marine Le Pen suaviza a imagem
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Em abril e maio, os franceses escolherão seu próximo presidente da República. Trata-se de uma disputa cujo sentido vai muito além das fronteiras da França. Uma possível vitória de Marine Le Pen, da extrema-direita, consolidará um cenário perigoso para a humanidade. Uma possível unidade das esquerdas pode abrir uma chance para o futuro.

A conjuntura política internacional se deteriora velozmente: a crise econômica mundial iniciada em 2008 assume um caráter de crise da democracia e civilizatória. As elites políticas e econômicas do planeta impuseram, por meio da captura da democracia pelo 1% mais rico, um aprofundamento do neoliberalismo que teve como resultado o aumento dos lucros de poucos e o aumento da pobreza e a perda de direitos para muitos.

Os povos do mundo, cansados de aliança entre burocracias e rentistas (como tão bem mostrou o filme “Eu, Daniel Blake”, de Ken Loach) se voltam para soluções radicais e antissistêmicas. O problema é que só a extrema direita tem ocupado esse lugar. Nos 100 anos da Revolução Bolchevique, cujo exemplo deveria inspirar nossas lutas e sonhos, vemos a consolidação de projetos autoritários e conservadores em todo o planeta.

 A começar pela potência mais importante, com seu novo presidente, Donald Trump, que derrotou o establishment dos partidos republicano e democrata, ambos comprometidos até a medula com o neoliberalismo cada vez mais impopular.

Os EUA mergulharam em uma agenda antiliberal e ultraconservadora: muro na fronteira com o México, veto à entrada de cidadãos nascidos em sete nações mulçumanas, programas de deportações em massa, proposta de liberar que as igrejas interfiram na política, o que é proibido desde 1954, investimentos em projetos energéticos nocivos ao meio ambiente, que antecipam uma provável ruptura unilateral com os frágeis pactos ambientais da ONU. 

Os impactos geopolíticos da nova situação política estadunidense jogam mais gasolina no fogo da crise democrática e civilizatória. No Oriente Médio, Trump apresenta uma carta branca para Israel. O povo palestino e o mundo estão mais distantes de uma resolução positiva desse conflito fundamental para a construção de uma paz duradoura na região.

Na Ásia, os sinais do presidente dos EUA apontam para um aumento da beligerância no continente que apresentou os maiores níveis de crescimento econômico do mundo nas duas últimas décadas, com ameaças à China e alertas ao Japão para a necessidade de se armar. Em paralelo, a América Latina vive um novo ciclo de esgotamento das experiências progressistas e de nova ofensiva neoliberal e conservadora, marcado pela vitória de Maurício Macri na Argentina, pela crise na Venezuela e pelo golpe no Brasil.

Na Europa, o quadro não é distinto, com crise econômica persistente e crescimento vertiginoso da extrema-direita diante da falência neoliberal. Isso explica o resultado do plebiscito que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.

A Rússia se consolida como um pilar geopolítico conservador e autoritário, aumentando sua influência externa e com uma sociedade civil cada vez mais controlada e reprimida através de leis contra dissidentes políticos, leis antigay e até mesmo a despenalização da violência doméstica contra as mulheres.

No centro do continente, a Alemanha se apresenta como polo de resistência dos valores liberais, porém Merkel dá sinais de que vai ceder à agenda extremista e xenófoba, ao menos no tema dos imigrantes e refugiados.

O roteiro das eleições parecia de repetição desses processos. O governo do socialista Hollande apenas reproduziu o pacto neoliberal e terminou em tragédia, com o presidente a desistir de concorrer à reeleição em um pleito liderado por Marine Le Pen. Na disputa, destacavam-se um cardápio de candidatos direitistas, todos comprometidos com o projeto neoliberal.

A honrar a posição à esquerda está Jean Luc Melénchon, que fez oposição a Hollande com um programa nítido de rejeição ao neoliberalismo e de defesa do Estado do Bem-Estar Social e dos valores do humanismo. A novidade na política francesa foi o reposicionamento dos socialistas com a escolha de Benoit Hamon como candidato. Hamon é um quadro da esquerda partidária, crítico ao governo Hollande e defensor de um programa anti-austeridade e com propostas de renovação do Estado de Bem-Estar tais como a renda mínima universal.

Benoit Hamon Hamon, o escolhido do Partido Socialista (Foto; Bertrand Guay/AFP)

 

A novidade, bem como os dilemas que dela decorrem, não são uma exclusividade da esquerda francesa. As bases dos partidos da socialdemocracia estão em revolta com as burocracias aliadas do neoliberalismo. Na Inglaterra, Jeremy Corbyn foi escolhido pela militância como líder do Partido Trabalhista contra a vontade da cúpula partidária.

Nos EUA, Bernie Sanders não teve o mesmo êxito e acabou derrotado por Hilary Clinton nas prévias democratas em função dos votos dos dirigentes, mas entre os ativistas e simpatizantes o apoio ao seu nome foi crescente. Ambos defendem a ruptura dos seus partidos com o neoliberalismo e a construção de processos de mobilização e programas políticos antissistêmicos para fazer frente ao fortalecimento da extrema-direita.

Outra manifestação dessa revolta das bases contra a adesão da socialdemocracia ao neoliberalismo aparece na construção de alternativas partidárias aos socialistas em Portugal, Espanha e na França a partir de uma estratégia de fazer oposição aos governos neoliberais liderados pela direita e pela socialdemocracia, apostando que, na falência desses governos, poderão se tornar a força majoritária entre as esquerdas e na sociedade.

Em todos esses casos, essa estratégia pura falhou, não sem deixar bons frutos: de fato, o Bloco de Esquerda português, o Podemos espanhol (este com a peculiaridade de ter sido criado após a intensa onda de manifestações dos Indignados em 2011) e a Frente de Esquerda francesa cresceram e consolidaram tanto um eleitorado cativo (em torno de 10% na França e em Portugal e 20% na Espanha) quanto um protagonismo político nacional.

O impasse em torno do desafio de formar maiorias que sejam capazes de refundar política e socialmente a Europa tem produzido um sentido de unidade entre as esquerdas radicais e uma socialdemocracia claudicante.

Em Portugal, o Bloco de Esquerda e os comunistas sustentam desde o fim de 2015 um governo socialista comprometido com o fim da austeridade. Na Espanha, o Podemos fez a mesma proposta ao PSOE no começo de 2016, o que foi recusado pelos socialistas, que preferiram seguir fiadores do neoliberalismo. 

As mesmas questões e dilemas se apresentam na França. Em pesquisa divulgada pelo jornal Paris Match no dia 1º de fevereiro, Melénchon caiu de 14% para 9% das intenções de voto e Hamon saltou de 6% para 18% desde sua confirmação como candidato, o que o coloca em empate técnico com os candidatos da direita (Filon com 21% e Macron com 20%) na luta por um lugar no 2º turno contra Le Pen, que lidera com 24%.

As pressões e esperanças pela unidade das esquerdas são crescentes diante da possibilidade de uma coalizão que derrote a extrema-direita e permita um governo de respostas radicais e antissistêmicas, com potencial de alterar o contexto geopolítico mais geral, dada a importância da França nos arranjos europeus e no simbolismo das esquerdas.

Não se trata de um processo simples. A escolha de Hamon não cancelou todas as contradições dos socialistas, que seguem um partido colado em demasia ao sistema político oficial. Mélenchon e seus apoiadores sabem quão difícil foi fazer oposição a Hollande e nenhum projeto coletivo abre mão do seu caminho de uma hora para outra.

O desafio é produzir uma unidade que supere os sentidos burocráticos que atravessam os socialistas e que derrote o sentido sectário que perpassa “a esquerda da esquerda”. Uma unidade que renove as esperanças na construção de um outro mundo distinto do deserto neoliberal e do pesadelo fascista. Uma unidade que se espraie por todo mundo, e que chegue ao nosso Brasil golpeado, pois somente com a convergência das esquerdas poderemos superar a crise democrática e civilizatória que ameaça o nosso futuro.

 * É professor de Ciência Política e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.  

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