Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Nexo interno-externo da crise argentina: o essencial é visível aos olhos

Renegociação com o FMI não poderá produzir os efeitos mágicos necessários para reverter o quadro de emergência econômica

Macri revela inabilidade que pode gerar problemas de governabilidade no curto prazo
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Por Monica Hirst

Por mais reconhecíveis que sejam as crises argentinas, sempre parece simular-se um certo suspense sobre o seu desenlace. A natureza cíclica de regresso a um beco sem saída, empurrada pelo agravamento de desequilíbrios macroeconômicos, alimenta um crônico déficit de confiança coletivo que fragiliza, mas não pulveriza, a capacidade de resistência dos movimentos sociais organizados.

O efeito déjà vu se manifesta na atmosfera de vertigem política impactada pelo automatismo do vínculo entre volatilidade cambiária (o que se passou a associar com a ideia de uma economia bimonetária) e a escalada inflacionária-, o desdém das elites locais e a perplexidade da comunidade internacional.

Nos últimos dias caiu por terra a ilusão do governo Macri de que as dificuldades de financiamento que enfrentava sua máquina fiscal teriam sido superadas pela decisão tomada em maio passado de adotar a receita, tão desgastada no Sul global, de combinar  políticas de ajustamento com endividamento externo. Soma-se ainda o contexto de uma economia plenamente desregulada e altamente permissiva para a entrada e saída de capitais. 

O custo político da cessão de soberania, com a ida ao FMI em maio passado, não parece ter se traduzido num posicionamento externo com compensações tangíveis, e as concessões em matéria de ortodoxia liberal implicou crescentes desequilíbrios sociais com grave impacto para os setores médios e populares.

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 Em termos políticos internos, o atual governo argentino vem revelando inabilidades que lhe poderiam gerar problemas de governabilidade no curto prazo (o governo Macri  já não conta com base parlamentar sólida).

Uma pífia reforma ministerial revelou mais fissuras do que coincidências em sua coalizão de apoio Cambiemos, especialmente com a União Cívica Radical (UCR)- que procura manter uma distância prudente das mangueiras macristas, incapazes de apagar o incêndio.  A execução de uma reforma ministerial que reduziu de forma desordenada a máquina do Estado colocou em estado de orfandade políticas públicas de áreas como ciência e tecnologia, saúde e cultura.

Ao mesmo tempo, o contexto político doméstico mostra-se precário, principalmente frente à corrosão diária que a escalada inflacionária produz sobre o poder de compra da população. Na sequência da desenfreada subida de preços vem a ausência de preços, o que gera práticas especulativas e o desaparecimento de produtos essenciais, especialmente no ramo alimentar.  O impacto desta realidade na agenda trabalhista foi imediato, esperando-se uma etapa de duras negociações salariais acompanhadas por mobilização e medidas de força.

Uma mínima dose de senso comum é suficiente para saber que uma renegociação com o FMI, tal como se espera nos próximos dias, não poderá produzir os efeitos mágicos necessários para reverter o quadro de emergência econômica.

A única moeda de troca da equipe de governo é o ajuste fiscal, o que se traduz num processo de déficit zero até fins de 2019. A expectativa per se colocada na esperada liberação antecipada de recursos somada à autorização de uso de reservas para conter a desvalorização da moeda reduz ainda mais a soberania da nação argentina. Além da deliberada decisão de aprofundar a condição de subalternidade do país, esta entrega de poder outorga maior visibilidade a um paradoxo.

O presidente Macri e seu entorno vêm de forma crescente transferindo a responsabilidade dos seus percalços a fatores externos. A narrativa oficial, que durante dois anos e meio depositava esta carga no governo anterior, atribui o fosso em que se encontra o país à somatória de adversidades, tais como: a crise turca, a desvalorização cambiária brasileira, o aumento do preço internacional do petróleo e os conflitos comerciais entre os Estados Unidos e a China. Vale mencionar que a sociedade argentina parece não concordar com esta interpretação da realidade argentina.

Uma pesquisa de opinião recente conduzida pela consultora Julio Aurelio indicou que numa amostra nacional, 72% dos entrevistados consideravam que as causas da atual crise eram locais e apenas 6% que fossem externas.

De qualquer forma, o diagnóstico do governo merece algumas considerações. A primeira de que inexistem, desde a perspectiva  da Casa Rosada, definições acerca de um campo de ação internacional propriamente dito. Uma avaliação que coloque tanto poder explicativo no plano externo exigiria uma ação diplomática que acompanhasse, assistisse e norteasse os governantes argentinos no cenário internacional.

A reforma ministerial contemplou, por breves minutos, esta necessidade. Em termos concretos, a tentativa – logo frustrada – de somar o ex-ministro Prat Gay ao gabinete foi a indicação deste vislumbre.  A desgastada imagem internacional da Argentina é agravada por uma política externa vazia de conteúdo e propósito. Trata-se de uma política externa monotemática que desde o início da gestão de Macri insiste, a qualquer preço, estreitar o vínculo com os Estados Unidos.  

Para Washington, frente ao vazio deixado pela crise brasileira, à sangria venezuelana e ao estado ainda fragilizado da paz colombiana, trata-se de oferecimento que proporciona a vantagem de manter acesa a chama do anti-progressismo na região e de reforçar o processo de esfacelamento do multilateralismo sul-americano.  

Ademais, um apoio à Argentina poderá ser útil para a Casa Branca enviar uma mensagem à Turquia- país com o qual as tensões se redobraram nos últimos meses. O apoio recebido da Casa Branca às negociações junto ao Fundo e a promessa de Trump de realização de uma visita presidencial, aproveitando o embalo da reunião do G20, reforça a convicção do governo argentino quanto ao acerto de sua ideia fixa. 

Na realidade, trata-se de mais um déjàvu, neste caso com desenlace conhecido. A última experiência de alinhamento aos Estados Unidos, entrelaçada com a adoção de rígidas políticas de estabilização, deixou claro que no momento de queda a Argentina é deixada à sua própria sorte. 

Aliás, por falar em sorte, a da administração Trump dependerá, em grande parte, do resultado das eleições legislativas norte-americanas de novembro. Mas neste momento, novembro está longe. O sentido de emergência torna irrelevante perguntar se existiria alguma vantagem em ser farsa no lugar de tragédia.

*Monica Hirst é professora titular do Departamento de Economia e Administração na Universidad Nacional de Quilmes e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

                                                                                               

 

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