Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

O lugar do Sul na política externa brasileira do governo provisório

Descarte da dimensão Sul-Sul seria ação imprudente à política externa brasileira

Deixar de lado relações Sul-Sul compromete princípios já consolidados de autonomia
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Desde seus primeiros minutos em ação, o governo provisório, liderado pelo presidente interino Michel Temer, já reiterou por diversas vezes seu intuito de resgatar a credibilidade internacional entre investidores estrangeiros e fortalecer a inserção da economia brasileira no mercado internacional.

A nomeação de José Serra, um político de peso e com conhecidas aspirações presidenciais, para a pasta de Relações Exteriores, eleva a prioridade da política exterior no debate político doméstico.

A ênfase em negociações comerciais, a tradicional preferência do PSDB por relações com países desenvolvidos e a baixa prioridade (por vezes beirando a retórica do desprezo) dada às relações do Brasil com os vizinhos (sobretudo aqueles capitaneados hoje por líderes de esquerda) indicam um realinhamento geopolítico, marcado por não priorizar a cooperação política e econômica no eixo Sul-Sul e o ressurgimento de uma visão de política externa a serviço do desenvolvimento econômico doméstico.

O sentido de desenvolvimento aqui muito se aproxima da ideia de crescimento econômico, deixando de lado outras dimensões da ação externa do país exploradas nos últimos anos, como o combate à fome e a diversificação das relações diplomáticas em um contexto internacional multipolar.

Sob a batuta petista, a política externa brasileira também buscara elevar o protagonismo internacional do Brasil por meio de uma política “altiva e ativa”. 

De certo que a altivez e a pró-atividade já estavam em baixa e a agenda comercial já ganhara protagonismo desde o início do segundo mandato de Dilma. No entanto, a guinada atual aparenta ser mais profunda e as diretrizes anunciadas pelo chanceler convergem para uma visão de política externa estreitamente relacionada ao comércio.

Taxar como correta uma dimensão Sul-Sul orientada exclusivamente por interesses econômicos e classificar como publicidade os investimentos realizados pela política externa em alçar o país a uma posição mais autônoma e protagonista no cenário internacional – como afirmado pelo chanceler – condiz apenas com o “interesse nacional” de uma pequena parcela da sociedade brasileira e menospreza alguns dos avanços realizados pela política externa brasileira.

Essa concepção desconsidera a realidade da política externa brasileira em seus diversos eixos e simplifica demasiado as implicações dos atuais contextos doméstico e internacional para o seu imbricado processo decisório.

Ainda que a orientação da política externa desprivilegiará a relação baseada em interesses mútuos de desenvolvimento e na solidariedade com países em desenvolvimento, acreditamos importante considerar as inúmeras variáveis domésticas e internacionais que determinam o processo decisório da Política Externa e ampliam a reflexão sobre seus rumos.

Entre essas variáveis elencamos: o contexto internacional multipolar; princípios já consolidados de autonomia e diversificação das relações exteriores do Brasil; o carácter horizontal do processo decisório em política externa; a institucionalidade dos atuais engajamentos do Brasil com seus parceiros do Sul; o custo político e simbólico de abster-se de temas globais e os desafios que a própria crise política e econômica impõe para a política externa.

No atual contexto internacional, caracterizado pelo aprofundamento da multipolaridade e protagonismo de países em desenvolvimento pensar um Brasil voltado a cultivar suas relações com os ‘do Norte’ e os “do Sul” a partir de um viés predominantemente econômico é ignorar não somente a identidade internacional do país, mas também os importantes câmbios na estrutura do sistema internacional das últimas duas décadas.

Não se trata de uma conjuntura passageira e é por isso que o Itamaraty, um órgão que tradicionalmente preza pela continuidade da estratégia de inserção internacional país e dos sempre disputados “interesses nacionais”, tem trabalhado nas últimas décadas para consolidar a presença brasileira no entorno regional, assim como sua atuação em espaços multilaterais e na democratização dos organismos de governança global.

Nestes três eixos estratégicos da política externa exigem-se do Brasil não apenas boa interlocução, mas sobretudo articulação e relações amistosas, baseadas em ganhos mútuos, com os países do Sul.

Ao mesmo tempo, o Itamaraty não é o único ator responsável pelas decisões em política externa. Há tempos constata-se que a política externa responde à dinâmica e multifacetada agenda global, na qual ministérios e empresas público-privadas participam de uma infinidade de redes e compromissos internacionais, para além de agendas de comércio e investimento.

Essa inserção internacional difusa proporciona ao processo decisório maior permeabilidade a distintos interesses econômicos e sociais, complexificando a negociação de posições.

Ainda, movimentos e organizações da sociedade civil brasileira seguirão mobilizados, demandando maior democratização do processo decisório da política externa, defendendo espaços conquistados e agendas relacionadas aos bens-públicos globais e denunciando ações do governo brasileiro que contradigam princípios constitucionais ou comprometimentos internacionais assumidos pelo Brasil anteriormente.

Promover um realinhamento ideológico da política externa maquiando-a como política de Estado e conclamar apenas a participação e consulta de setores produtivos é colocar o interesse público a serviço de interesses privados e ignorar seu caráter de política pública, sujeita a controles e definições democráticas.

A institucionalidade das relações com outros países do Sul também deve ser levada em conta, um eventual rompimento acarreta custos de natureza diferente para cada um dos casos.

No caso do agrupamento BRICS, cujo mais recente capítulo se refere à recente institucionalização do Novo Banco de Desenvolvimento, resta saber se o chanceler buscará descaracterizá-lo como uma iniciativa do Sul e diminuir a relevância do Brasil no debate sobre financiamento internacional ao desenvolvimento.

No caso do Mercosul, a institucionalidade existente no bloco (fruto de desdobramentos progressivos desde a década de 1990) implicam esforços importantes para qualquer tipo de reforma ou rompimento por parte do Brasil, gerando resistências e desgastes doméstico e internacionais, com os demais sócios do Mercosul.

A Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento, por sua vez, tampouco é uma agenda que convém abandonar. Nos últimos anos, a cooperação brasileira cresceu em número e em capilaridade geográfica, revertendo ao Brasil entre outros um capital simbólico não-negligenciável.

Atraiu o interesse de doadores tradicionais e o país estabeleceu parcerias importantes com países como Alemanha, Inglaterra, Japão e Estados Unidos, assim como com organismos internacionais, para atuar conjuntamente – por meio da cooperação trilateral – em prol do desenvolvimento de outros países do Sul.

Apesar de ser uma agenda de menor peso, traz espaço para concertação com distintos países, assim como para influenciar a agenda dos organismos internacionais em temáticas específicas, contribuindo para que o Brasil seja uma voz importante nos debates sobre desenvolvimento internacional.

Entretanto, a menção sobre a possibilidade do Brasil “receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta”, indica uma possível concepção do papel do Brasil como recipiente de ajuda externa.

Essa afirmação aponta para um provável retrocesso do papel do Brasil como protagonista nos rumos dos debates sobre desenvolvimento internacional.

Apesar da crise conjuntural, neste mundo multipolar o Brasil segue sendo uma potência média e um importante ator internacional. As expectativas em relação ao seu desempenho e atuação nos grandes desafios globais podem reduzir temporariamente, mas não cessarão por completo.

Há espaço e anseios pelo contínuo compromisso do Brasil em crises como a dos refugiados com sua política ‘de braços abertos’ quando a Europa insiste em fechá-los, na mediação de interesses entre o Norte e o Sul em negociações internacionais, ou então nas distintas contribuições feitas ao longo do processo de negociação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, apenas para citar alguns exemplos.

Para além dos fatores mencionados acima, uma mudança radical de rumos da política externa enfrenta também os desafios conjunturais da atual crise política e econômica doméstica. A negociação de novos acordos de comércio leva tempo, mobiliza distintos interesses domésticos e não trará os frutos prometidos tão cedo.

Simultaneamente, a crise debilita a atuação internacional do país, valendo para quaisquer que sejam suas orientações. Soma-se a isso o fato da necessidade do governo provisório fazer valer sua legitimidade em um contexto no qual meios de comunicação internacionais questionam o processo de impeachment e a credibilidade dos integrantes do novo governo, assim como as declarações de diversas chancelarias têm enfatizado a natureza provisória do governo ou, diretamente, não o reconhecem.

Por fim, se o Sul merece ter um lugar na política externa deste governo provisório para além do intercâmbio econômico, as incertezas permanecem muitas para que este lugar esteja garantido.

Quais serão os principais atores que se mobilizarão nas pautas de política externa de cada ministério e como estas pautas dialogarão com os compromissos anteriores assumidos perante os parceiros do Sul?

Como a política externa do governo provisório responderá às expectativas da comunidade internacional para que o Brasil mantenha seu papel de potência emergente?

Como responderá às frentes abertas que buscaram ampliar o escopo de política externa como um instrumento de desenvolvimento social e humano e não apenas do crescimento econômico?

Como formulará uma política externa que responda a os desafios globais de um contexto multipolar que exigem um Sul, do qual o próprio Brasil faz parte, mobilizado e atuante?

Melissa Pomeroy é doutora em Ciência Política pela Universidade Autônoma de Barcelona.

Laura Trajber Waisbich é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris.

*Convidadas do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

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