Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Política externa, democracia e o novo Congresso

A legislatura eleita em outubro sugere um retrocesso na política “altiva e ativa” que elevou o status do Brasil no cenário internacional

Sessão extraordinária da nova Câmara em fevereiro: retrocesso na política externa
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Por Tatiana Oliveira*

Em 1º de janeiro de 2015, foi empossada a legislatura que acompanhará a presidenta Dilma Rousseff (PT) ao longo do seu mandato. As análises sobre a nova composição de ambas as casas legislativas têm convergido na avaliação de que este Congresso é mais pulverizado partidariamente, liberal economicamente, conservador socialmente, e dramaticamente atrasado em matéria de direitos humanos e meio ambiente. Até agora, no entanto, nenhuma palavra foi dita sobre possíveis desdobramentos desse cenário para a condução da política externa brasileira. O silêncio é plenamente compreensível, uma vez que no Brasil, formalmente, a Constituição confere ao Legislativo poderes bastante restritos no que se refere à política externa.

O atual regime constitucional centralizou nas mãos do Executivo a iniciativa sobre política externa, cabendo ao Legislativo uma participação coadjuvante, ao final do processo decisório, por meio da aprovação ex-post facto dos acordos internacionais. Consequência disso, uma parte da literatura especializada acabou consagrando a interpretação da “apatia” ou do desinteresse dos nossos legisladores em relação às questões externas – e esta talvez seja a perspectiva mais conhecida e evocada do problema. Em geral, os argumentos sobre o desinteresse do Legislativo sobre temas externos podem ser sistematizados em três pontos: (1) O alto grau de autonomia reconhecido do Itamaraty; (2) a exigência de conhecimento especializado; e (3) a baixa repercussão dos temas de política externa na agenda política nacional.

Estes aspectos convergem para uma tradição política elitista, que rechaça a participação social como um elemento que leva o processo decisório à irracionalidade. Desde este ponto de vista, a sociedade deve eleger seus representantes, deixando a política àqueles que são especialistas na sua operação. Este é, todavia, o fundamento daquilo que chamamos de “patologia da representação e da participação”, isso é, a falta de identificação das pessoas com a política e com os políticos. Hoje, após termos passado por uma série de manifestações sociais pela democratização da política e por maior participação social, pode-se dizer que além de ser esta uma compreensão restrita da política, com um componente excludente em relação à boa parte da cidadania, tal visão está ultrapassada e não dialoga com os anseios de uma juventude que vem transformando a cultura política em todo o mundo.

Ao contrário desta perspectiva, eu gostaria de sugerir dois pontos que me parecem importantes para compreender a atuação do Legislativo em relação a temas de política externa: Em primeiro lugar, a política internacional ganha novos contornos na contemporaneidade, não sendo possível ignorar os efeitos da inserção de um país no mundo globalizado para o conflito distributivo doméstico. Daí o maior interesse da sociedade civil por esses temas. A configuração das relações de poder no plano internacional e a aguda desigualdade promovida pela divisão internacional do trabalho afetam diretamente a maneira pela qual as classes se estruturam e se movem dentro de países com histórico de subdesenvolvimento. Isto nos ensinou a política externa Lula/Amorim quando vinculou a luta pelo combate à fome e à desigualdade a um sistema internacional, ele mesmo, menos desigual.

Em segundo lugar, a influência do Legislativo no processo decisório de política externa deve ser compreendida de maneira um pouco mais fluida e difusa. Dessa maneira, instrumentos como a atuação das comissões de política externa, audiências públicas, a convocação de ministros de Estados e o requerimento de informação, considerados de menor impacto, convertem-se em atos plenos de consequências. Isto porque tais instrumentos constituem espaços de manobra para articulação política, com a capacidade de elevar à atenção pública qualquer pauta externa, pressionando, assim, tanto a Presidência quanto o Itamaraty.

A atuação do Congresso no que se refere a temas externos se dá, portanto, muitas vezes no plano da articulação política, independe de uma prescrição legal que a avalize, e não ocorre necessariamente nos corredores de ministérios e secretarias especializadas. Aqui, é importante notar que a incursão da política, e das disputas políticas domésticas, nos temas externos também não é uma novidade dos últimos doze anos, mas uma realidade em todo o mundo, acirrada pela expansão e aprofundamento da globalização neoliberal. O discurso da isenção e da neutralidade da política externa serve, tão somente, para proteger e legitimar uma atuação historicamente interessada que, no caso brasileiro, favorece os setores da economia vinculados ao mercado externo.

É, por exemplo, possível acreditar que empresários e ruralistas representados em ambas as casas legislativas – estes que, inclusive, sempre compõem as delegações brasileiras em visitas de negócios ao exterior – não têm qualquer interesse por política externa? De outro lado, ativa, porém institucionalmente com menor força e voz, a sociedade civil organizada também se mobiliza (e não é de hoje) em torno de pautas externas. Alguns exemplos são as ações contra a Alca, o capitalismo verde, ou à liberalização comercial, esta última apresentada com o novo e sedutor vocabulário das “cadeias globais de valor”. Mais recentemente, podemos citar a impressionante adesão da sociedade civil ao evento paralelo à Cúpula dos Brics, ou a massiva presença dos sindicatos brasileiros através da Confederação Sindical das Américas e Internacional (CSA-CSI) na COP 20 da ONU, que aconteceu no Peru, para temas sobre sustentabilidade e meio ambiente – ambos amplamente noticiados neste blog.

Todos estes são exemplos de ações organizadas de grupos políticos que buscam influenciar as decisões de política externa. A diferença entre um e outro está, obviamente, na representatividade de que desfrutam certas opiniões no espaço congressual. Nesse sentido, sempre houve e sempre haverá interferência do jogo político doméstico em relação à formulação da política externa. Por um lado, se entendermos o Estado e o Direito como instituições que possuem limites claros no que tange à representatividade das classes sociais e dos seus interesses, é possível pensar, por exemplo, que a “acusação” acerca da “politização” da política externa apenas se coloca em razão de uma maior exposição, nos últimos anos, da economia política da política externa. Por outro lado, se a política externa é também política pública, ela responde (e deve responder) ao eleitorado. A questão é saber que fração do eleitorado está representada no Congresso e por qual política externa esse segmento se interessa.

A legislatura de 2015 reproduz o padrão das composições anteriores no que se refere à representação da diversidade da sociedade brasileira. Isto significa dizer que ela reflete de modo insuficiente essa diversidade. As mulheres – 51,5% da população brasileira, dados do IBGE – ocupam apenas 10% das vagas no Legislativo, ou seja, em um total de 513 deputados, foram eleitas 51 mulheres. No Senado, das 27 vagas disponíveis, cinco foram preenchidas por mulheres. No conjunto dos deputados, 1,6% são mulheres autodeclaradas pardas, e 0,6% negras. Nenhum indígena foi eleito. Os trabalhadores e as trabalhadoras tiveram a representação sindical reduzida em cerca de 50%, passando de 83 para 46 deputados. Por oposto, 71% dos candidatos eleitos são homens, 15% se declararam pardos e 3,5% negros. Os empresários, por outro lado, industriais e ruralistas, estão mais fortes. E houve aumento de bancadas consideradas “conservadoras” como a da “bala” e “evangélica”, que se elevaram de 191 para 247 deputados.

Esse cenário não parece indicar um futuro muito animador para a política externa brasileira. Sugere um retrocesso no que se refere à construção “altiva” e “ativa” anterior, que serviu à promoção de uma perspectiva de desenvolvimento inclusiva e democrática. Some-se, lamentavelmente, à configuração do Legislativo a nova equipe econômica liderada por um Chicago Boy e a ultrajante presença de Kátia Abreu no Ministério da Agricultura. Estes serão obstáculos (não empecilhos) para continuar a “mudar mais” o País. Para superá-los, a sociedade deverá organizar-se, e o governo deverá trabalhar para a ampliação dos mecanismos de participação política. O desafio é governar com a sociedade e não com a velha política, recuperando o projeto democrático e popular que fundou o Partido dos Trabalhadores (PT). No caso da política externa, esse horizonte recoloca, de modo agudo e urgente, o projeto do Conselho Nacional de Política Externa (Conpeb) como uma forma de garantir a representatividade de grupos com menor poder econômico, além de abrir novos canais de diálogo entre governo e sociedade.

*Tatiana Oliveira é cientista política e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI).

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