Conjunturando

Caiu ou não a desigualdade no Brasil?

Ao contrário do uso político do estudo do economista Marc Morgan, o Brasil melhorou. É preciso, no entanto, combater o desequilíbrio extremo

A desigualdade extrema cresce no Brasil e no mundo
Apoie Siga-nos no

Diante da recente evolução do conhecimento acerca da desigualdade, quer no que tange à sua observação, quer no que se refere aos mecanismos que determinam suas trajetórias e os seus efeitos sobre a vida social, é inegável o acerto do economista Robert Reich (Harvard/Berkeley) ao afirmar, em 2013, que a preocupação com a necessidade de redução da desigualdade não mais depende das ideologias de cada um: hoje, depende muito mais do quanto se tem informação a respeito do assunto e não de um apego maior por princípios de liberdade ou de igualdade entre os homens.

A experiência histórica e as evidências empíricas nos mostraram que nenhum dos extremos é desejável: uma sociedade onde as rendas fossem plenamente equalizadas eliminaria uma série de bons incentivos para os indivíduos se tornarem produtivos (estudar, trabalhar mais, investir), e, por outro lado, uma sociedade de desigualdade exacerbada implicaria igualmente em desincentivos, exclusão de grande parte da população do mercado consumidor, perda de produtividade, danos à saúde, à democracia, aumento da violência, dentre tantos outros efeitos demonstrados.

Em que pese, portanto, os danos de ambos os extremos, apenas a desigualdade extrema representa um problema real no mundo contemporâneo, por causa sa tendência geral de aumento da concentração de renda verificada desde os anos 1970. Não por acaso, hoje a preocupação com os altos níveis de concentração de renda se mostra presente tanto no âmbito acadêmico quanto nos grandes centros decisórios da economia internacional. E mesmo onde tradicionalmente se apresentava uma visão contrária, como no FMI ou em Davos.

Ao menos desde 2014, parece se formar um certo consenso sobre o impacto da desigualdade no crescimento econômico: se há ao menos 20 anos existiam trabalhos, inclusive do staff do próprio FMI, a mostrar uma correlação entre a maior desigualdade e uma pior performance econômica (e demonstrando que aquela mina o progresso nas áreas de saúde e educação e afeta a própria estabilidade), o avanço da técnica permitiu separar melhor a doença do remédio. Havia ainda um argumento de que era o gasto progressivo realizado no afã de reduzir a desigualdade que acabava por ocasionar um crescimento mais fraco em países mais desiguais (i. e., que era o gasto maior com políticas sociais que minaria a eficiência).

Desde o estudo publicado por Jonathan Ostry e colegas em 2014, restou demonstrado que os mecanismos redistributivos induzem crescimento, à exceção de casos muito extremos. Em outro artigo, publicado no ano seguinte, os economistas do Fundo chegam a afirmar que o crescimento da desigualdade de renda é mesmo o maior desafio de nosso tempo, após constatarem que quando a proporção da renda total recebida pelos 20% mais ricos aumenta, o crescimento do PIB oscila para baixo no médio prazo, enquanto que, se a fatia da renda total que é percebida pelos 20% mais pobres cresce, essa mudança vem associada a um maior crescimento do PIB.

É também em 2014 que a obra “O Capital no séc. XXI” do francês Thomas Piketty ganha projeção internacional e passa a nortear as discussões acadêmicas e político-econômicas a respeito do tema. Ao demonstrar, utilizando os dados fiscais, que a concentração de renda no topo cresce de forma consistente desde os anos 70, revertendo a tendência anterior verificada desde o pós-guerra, e que essa nova tendência é em grande parte politicamente determinada, por meio de mecanismos como a reversão da progressividade do sistema tributário, colaborou para um aperfeiçoamento da observação do fenômeno pelo mundo todo.

No Brasil, a realização dos primeiros estudos recentes utilizando os dados tributários se deu também a partir da disponibilização de alguns dados pela Receita Federal em 2014. Esses estudos mostraram de pronto uma concentração de renda ainda maior que aquela dos Estados Unidos, que até então saltava como o pior exemplo de aumento da concentração no período. Como é sempre esperado, uma vez que os dados fiscais permitem enxergar melhor a renda dos mais ricos, enxergou-se uma concentração muito maior da renda no topo do que a que era anteriormente captada nas pesquisas domiciliares.

Importa frisar que, a despeito de os dados fiscais mostrarem um aumento da concentração da renda no topo, que era a maior com certa folga, é inegável que essa medida de desigualdade é a única na qual o Brasil não apresentou melhora: em todas as medidas relacionadas à educação, saúde, acesso a serviços de água e energia elétrica, coleta de lixo, saneamento básico, etc., é marcante a evolução brasileira desde 1989, e esse movimento resta devidamente registrado na obra Trajetórias da Desigualdade, organizada por Marta Arretche e publicada em 2015.

Com efeito, a chamada “inclusão dos outsiders” ocorrida após o reconhecimento ao voto dos analfabetos, que incluiu em 1988 a adoção de sistemas universais de saúde e educação, além da instituição de aposentadorias não vinculadas e de uma série de outras políticas, contribuíram para quase erradicar o analfabetismo e tirar o país do mapa da fome, impulsionando de forma veemente o bem-estar de parcela expressiva da população. 

Mesmo no que se refere à própria renda dos mais pobres, a forte evolução do salário mínimo, que mais do que dobra de valor real, e programas de transferência de renda como o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família levaram o pobre brasileiro a melhorar, ainda que muito timidamente, em virtude do relativo pequeno volume das transferências, sua fatia no bolo, a despeito da tendência contrária observada na maioria dos países.

O primeiro desses estudos foi realizado por Medeiros, Souza e Castro, dando início a uma série de trabalhos que permitem olhar essa concentração anormal e, em alguns casos, fazer relações com o sistema tributário como seu indutor.

Um artigo publicado pelo pesquisador Pedro Souza no ano passado  mostra que o até então mais longo período de queda da proporção da renda apropriada pelo topo no Brasil se deu ao menos entre 1945 e 1964, quando então a ditadura assume e faz uma opção por um sistema tributário mais regressivo, revertendo fortemente a curva.

Em seguida, uma pesquisa de Marc Morgan, então orientando de Piketty, confirma o Brasil como um caso de desigualdade de renda sem precedentes entre os países estudados e mostra que esse incremento da proporção da renda total nas mãos do 1% mais rico não se confirmou com aumento na proporção do investimento, como pressupunham certos modelos econômicos de crescimento da chamada supply-side economics. 

Morgan também demonstra que os segmentos mais elevados de renda são baixamente tributados no Brasil, como resultado não apenas das alíquotas de IRPF ruins, mas  da isenção desse imposto sobre o lucro das pessoas jurídicas e da opção por uma ênfase sobre o consumo. Confirmando esta afirmação, Gobetti e Orair apontam que a tributação sobre a renda sobre os mais ricos no Brasil é de apenas 7%, sendo o país considerado um paraíso tributário pela ONU.

Enquanto isso, na outra ponta, estudos mostram que a carga tributária total incidente sobre quem ganha até 2 salários mínimos chegava a quase 49% em 2002.

O mais recente estudo publicado a respeito da concentração de renda no Brasil, publicado por Marc Morgan há poucos dias, observa o período compreendido entre 2001 e 2015 e mostra que a parcela da renda (antes dos impostos e transferências) apropriada pelo topo cresce: o 1% mais rico vê sua fatia aumentar de 25% para 28%, no conjunto de países estudados por Piketty, eles detém 10% da renda, quase um terço da nossa proporção, e os 10% mais ricos da população veem sua proporção na renda nacional subir para 55%.

O estudo mostra ainda que os mais ricos capturaram 61% do crescimento econômico do período, e para alguém fazer parte do grupo dos 10% mais ricos no Brasil em 2015 é necessária uma renda bruta anual de 31.384 dólares, equivalente a cerca de 7,5 mil reais mensais (bruto) ou 5,8 mil (líquido).

0,1% mais rico da população brasileira detém 14% da renda, contra pouco menos de 4% no conjunto de países estudos na obra de Piketty. Nossa concentração do último milésimo em 2015 é mais de 3.5 vezes superior à média mundial no estudo do francês.

O que se vê então é um quadro politicamente produzido, na medida em que o desenho dos sistemas tributário, previdenciário, dentre outros se dá via legislativo, que, via captura pelos interesses dos detentores de maior poder econômico, acaba por gerar um sistema de financiamento estatal que, além de não combater a injustiça e a ineficiência da concentração de renda sem igual verificada entre nós,  a alimenta. Há também razões para supor que essa concentração é ainda maior do que a verificada nos dados, em virtude da sonegação e de remessas de recursos para paraísos fiscais.

Nas recentes recomendações de políticas do FMI aos EUA, resta expresso que há um veemente problema de falta de demanda gerada pela alta concentração de renda e que esse problema deve ser atacado através de incisivas políticas desconcentradoras, e o caso brasileiro é ainda muito pior.

Desse modo, se até um passado recente era preciso fazer referência a ideias como solidariedade social ou igualdade humana, ou mesmo buscar sensibilizar alguém em relação a problemas da pobreza ou injustiça para chamar atenção sobre ser a profunda concentração de renda um problema, hoje os próprios órgãos tradicionalmente representativos dos mais ricos mostram que apenas o interesse próprio é suficiente para que alguém do topo venha a ter interesse na redução, uma vez que é o próprio crescimento econômico que resta ameaçado. 

Se há alguma bandeira cujo impacto efetivo no bem estar dos indivíduos seria muito maior que aquele do combate à corrupção (e ainda teria efeitos positivos sobre o desempenho econômico, ao invés dos danos causados pelo segundo), e que deveria unir o Brasil, é a bandeira da diminuição da concentração extrema da renda. Está mais do que na hora de dar o destaque merecido a este tema, como primeiro passo para priorizá-lo na agenda política do País.

* É doutorando em Direito com coorientação em Ciência Política (USP).

REFERÊNCIAS MENCIONADAS

1. https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2011/sdn1108.pdf
2. https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2014/sdn1402.pdf
3. https://www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2015/sdn1513.pdf
4. ARRETCHE, Marta (org). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. 1ed. São Paulo: Unesp/CEM, 2015.
5. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092013000300009.
6. http://diagramaeditorial.com.br/sid/index.php/sid/article/view/2
7. https://pdfs.semanticscholar.org/0db7/25cb89bf55f07540fed948a772e19d1e070b.pdf
8. http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6633/1/td_2190.pdf
9. http://downloads.fipe.org.br/content/downloads/publicacoes/textos/texto_03_2007.pdf
10. http://wid.world/document/extreme-persistent-inequality-new-evidence-brazil-combining-national-accounts-surveys-fiscal-data-2001-2015-wid-world-working-paper-201712/

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo