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É preciso discutir a sério o aborto

O projeto aprovado por uma comissão da Câmara dos Deputados vai na contramão do tratamento do tema no mundo desenvolvido

Manifestação a favor do direito de escolha
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Uma comissão especial da câmara dos deputados, criada como uma resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal de não considerar crime a interrupção da gravidez em caso de anencefalia, vista como um primeiro passo rumo à futura descriminalização pela via judicial, aprovou o texto de uma proposta de emenda constitucional que inicialmente tinha o condão de ampliar a licença-maternidade no caso de nascimento prematuro.

O texto passou a dispor também sobre a criminalização do aborto em qualquer hipótese, incluídos até os casos de gravidez decorrentes de estupro, em relação aos quais hoje resta afastada a punibilidade por norma do Código Penal, e a gestação de fetos anencefálicos.

Muito embora a proposta possa ser vista como mais uma cortina de fumaça moral para demonstrar força e desviar a atenção da pauta economicamente relevante (como o estatuto da família ou a redução da maioridade penal) e de difícil êxito (dado que para além de seu caráter polêmico, é ainda uma emenda constitucional e portanto requer maioria qualificada), a simples aprovação em comissão da câmara tem gerado ampla inquietação social.

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Dada a seriedade do assunto, qualquer possibilidade de aprovação de uma emenda com esse teor deveria levar a uma reflexão séria, com observação atenta de indicadores da realidade, a fim de se discutir com clareza as possíveis consequências, por meio de um profundo debate com a sociedade e com as principais interessadas, as mulheres.

Um amplo estudo realizado em 2010 demonstrou que mais de uma em cada cinco mulheres brasileiras, ao fim da vida reprodutiva, fez um aborto. A mesma pesquisa demonstrou ainda que a prática se mostra muito mais comum entre mulheres com menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas habitantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

E que em cerca de metade dos casos a utilização de medicamentos foi o método utilizado para indução do último aborto e que também em cerca de 50% houve internação após a interrupção voluntária da gestação.

Não existem dados oficiais a respeito, e, por ser tal prática considerada crime no Brasil, existe uma natural resistência por parte dos envolvidos em relatar o ocorrido. Sabe-se que apenas o SUS realiza mais de 250 mil cirurgias anuais de curetagem decorrentes de aborto (a depender do ano, a cirurgia mais realizada no Brasil ou a segunda mais realizada, atrás apenas do parto normal), o que serve para dar uma ideia da dimensão do problema.

De acordo com os dados existentes, a estimativa é que algo entre 750 mil e um milhão de abortos são realizados a cada ano no Brasil, número superior ao estoque total da população carcerária no País, de 620 mil presos.

Guarde esse dado: se prendermos durante alguns meses as brasileiras que realizam abortos, nossa população carcerária vai dobrar. Em poucos anos, alcançaríamos um percentual imenso da população encarcerada se essa decisão de política criminal fosse efetivada.

Existem ainda outras graves consequências diretamente extraídas da regra penal proibitiva, e uma delas é o não oferecimento do procedimento no SUS e a inevitável existência das clínicas clandestinas de altíssimo custo para a gestante, em geral, proibitivo, e sem qualquer fiscalização sanitária.

Um amplo dossiê realizado em 2005 mostra que à época o custo do aborto numa clínica clandestina variava entre 1,5 mil a 3,5 mil reais. Corrigidos pela inflação, em 2015 esses valores equivaleriam a um custo entre 3 mil e 7 mil por procedimento.

Em um país onde o valor dessa operação cirúrgica é maior que a própria renda mensal para mais de 90% da população e, mais revelador, que mais da metade da renda anual para mais de 50% da população não surpreende que metade dos abortos tenham sido praticados por meio da autoingestão de medicamentos ou da introdução no útero de objetos cortantes, dada a impossibilidade de custeio do procedimento cirúrgico para a maioria das mulheres.

O Cytotec, marca fantasia mais famosa sob a qual é vendido o Misoprostol, medicamento para úlcera largamente utilizado para práticas abortivas, pode ser facilmente encontrado na internet por preços abaixo de 200 reais, mas são conhecidos os riscos de insucesso e sequelas tanto para a mãe quanto para o feto. Metade das mulheres que realizaram um aborto se valeram de medicamentos para tanto.

Não é preciso muito esforço para concluir que a chance de vir a óbito em virtude de complicações decorrentes de aborto aumenta conforme se é mais pobre. Pela própria estrutura do sistema penal, a possibilidade de se ter problemas com a Justiça em decorrência de tal fato também apresenta o mesmo quadro (e a própria incidência proporcional de abortos é maior em mulheres de escolaridade e renda menores).

Em que pese a frequência social dessa prática e a atuação histórica veemente de certos segmentos religiosos na busca de manter o quadro legal de criminalização, estudo realizado por Marcelo Medeiros e Débora Diniz destacou ainda a irrelevância estatística da filiação religiosa no que tange à possibilidade de a mulher praticar o aborto.

Pouco menos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas (aproximadamente a proporção católica da população), um quarto delas são protestantes ou evangélicas (o que igualmente traduz a proporção aproximada desse segmento na população) e menos de um vigésimo é de outras religiões.

Importante destacar que, embora a defesa da criminalização e da consequente não-inserção no âmbito do SUS de uma política pública de realização do procedimento seja movida por segmentos religiosos e seus representantes legislativos, existem na própria Igreja Católica (cuja opinião é de relevância destacada por representar, no último censo, mais de 60% da população brasileira) uma série de movimentos pró-escolha (contrários portanto à posição ainda hegemônica da instituição).

No segmento neopentecostal, o tema é controvertido e são diversas as manifestações públicas em defesa da descriminalização do aborto. A mais relevante delas é a frequente defesa do direito à escolha por parte do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, a maior denominação religiosa dentre as neopentecostais. No judaísmo, em caso de risco à mãe, o aborto é permitido.

Considerando-se então que entre 750 mil e um milhão de abortos são realizados por ano no Brasil e onde mais de um quinto das mulheres ao fim da vida reprodutiva realizou ou terá realizado um aborto, e onde metade dessas mulheres que praticam o aborto tem de ser internada após a interrupção, salta aos olhos que a norma que criminaliza o aborto não tem obtido grandes êxitos no que se refere a seu efeito intimidador/desestimulante da prática (para que a mulher se veja compelida a levar até o fim a gravidez indesejada), mas, ao contrário, pode ser apontada como a causa de inúmeras mortes de mulheres e de imposição de graves sequelas a muitas outras.

Outra referência útil para uma discussão séria é o fato de que no mundo desenvolvido o aborto, ao menos até o terceiro mês de gestação, não pode ser criminalizado. Nos EUA, desde 1973 (com o caso Roe vs. Wade) e na Alemanha desde 1975 (BVerfGE 39:1) as cortes constitucionais decidem nesse sentido. Mesmo no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil é vinculado, existe decisão (Caso Artavia Murillo) no sentido de afirmar a impossibilidade da criminalização.

O estudo realizado pelos pesquisadores de Brasília afirmou ainda que “os níveis de internação pós-aborto são elevados e colocam o aborto como um problema de saúde pública no Brasil. Cerca de metade das mulheres que fizeram aborto recorreram ao sistema de saúde e foram internadas por complicações relacionadas”.

Afirmou-se ainda que “boa parte dessa internação poderia ter sido evitada se o aborto não fosse tratado como atividade clandestina e o acesso aos medicamentos seguros fosse garantido”.

Um dos princípios fundamentais adotados no ordenamento jurídico brasileiro prescreve que o direito penal deve ser mínimo, isto é, devem ser criminalizadas apenas as condutas de maior reprovação social, com danos à esfera jurídica de outrem.

Não é papel da política criminal numa democracia determinar como criminosa a conduta de quem não age de acordo com uma dada concepção religiosa ou moral, sobretudo à custa de tantas vidas e consequências trágicas.

É no mínimo lamentável que num momento histórico no qual a discussão deveria girar em torno da redução de nosso atraso de meio século em relação ao mundo desenvolvido nesse tema, tratando da descriminalização e inclusão dos procedimentos no SUS de modo a evitar mortes absolutamente desnecessárias, o debate seja pautado por uma possibilidade de ampliação do alcance da norma penal.

*Doutorando em direito com co-orientação em ciência política (USP)

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