Conjunturando

Em busca da social-democracia brasileira

A esquerda que superou o fetiche do estatismo, reconhece os benefícios do mercado e não faz concessões ao autoritarismo precisa se unificar

Ato na Praça da Sé contra a reforma trabalhista
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No Brasil, a verdadeira social-democracia está dispersa. Depois de anos de experiência progressista de governo, entre avanços sociais e desvios éticos e programáticos, muitos jovens militantes, sindicalistas, estudantes e intelectuais fragmentaram-se em pequenos coletivos ou grupos de discussão. Os que permaneceram nas vidas partidárias e das grandes organizações muitas vezes têm dificuldades internas de exprimir seus pontos de vista e sentem-se desconfortáveis com camisas e rótulos que não lhes servem. Mas quem são os social-democratas? O que é a social-democracia brasileira?

O termo, identificado com o socialismo reformista, ao menos desde a grande cisão no movimento socialista internacional ocorrido em 1919, passou por grandes ressignificações ao longo do século XX. Se os social-democratas estiveram à frente da implementação de uma série de reformas sociais fundamentais por onde governaram, seus partidos e organizações não ficaram imunes à crise das grandes utopias e às próprias mudanças estruturais no mercado e no mundo do trabalho. Nas últimas décadas, a social-democracia no governo contentou-se em “humanizar o existente”, aplicando, com mediações pontuais e contrapontos identitários, o programa do neoliberalismo

Nessa situação, tal significante deveria ser pouco mais que uma curiosidade histórica ou, como de fato ocorre, um adorno ideológico para partidos de direita. Por que então o termo continua importante para tanta gente na esquerda? Correndo um risco da simplificação, responder a essa questão pode servir para simbolizar o desconforto e a diáspora comum a muitos que querem seguir um novo rumo e, ao mesmo tempo, livrar a si mesmos de representações que consideram, a um só tempo, anacrônicas e redutoras.

Em primeiro lugar, social-democratas de hoje não utilizam a muleta teórica da “dialética” para disfarçar a falta de imaginação política. Sabem que a resposta não será dada “no processo histórico” e que são absolutamente responsáveis por ter ou não respostas aos problemas dos cidadãos, por saber ou não implementá-las de modo eficiente. Para os social-democratas existem soluções boas e ruins, mas não existe o lado certo da história. 

Em segundo lugar, social-democratas aprenderam, seja na luta contra a ditadura, seja na construção da democracia contra o Estado oligárquico e de exceção, a importância das liberdades individuais e das garantias democráticas. Para eles, a radicalização da democracia não é apenas o fortalecimento do assembleísmo, mas a valorização profunda da autonomia e da reflexividade humanas. Para os social-democratas, não existem bons e maus ditadores e a existência do fascismo não é uma desculpa para adotar práticas similares àquelas do fascismo, mas dobrar a aposta na democracia. 

Em terceiro lugar, por não acreditarem em filosofias da história enigmáticas e valorizarem a reflexividade, social-democratas revisam periodicamente seus programas, desafiam seus dogmas e sacrificam verdades consagradas ao altar das melhores evidências disponíveis. Ao superar, por exemplo, a disputa hidráulica entre mais Estado e menos mercado e vice-versa, sabem que ambos são apenas instrumentos maleáveis a serviço da transformação social.

Social-democratas também enfrentam seus dilemas. Confrontam-se permanentemente com o fantasma da mera humanização do existente, como se a distribuição marginal da renda fosse o horizonte último de seus esforços. Por isso, muitos preferem assumir outras identidades, que os lembrem dos fundamentos utópicos de seu nascimento, dos sonhos de emancipação do trabalho e do engrandecimento de homens e mulheres comuns. Justamente por adotar, no presente, a prática como critério da verdade é que são, porém, genuinamente social-democratas.

No Brasil, contra as versões sociais-liberais genéricas, os verdadeiros social-democratas também sabem muito bem da vocação colonial e golpista das elites brasileiras, não acreditam no discurso que as instituições, muitas vezes oligárquicas e partidarizadas, fazem sobre si mesmas. Criticam duramente o oligopólio dos meios de comunicação. Por outro lado, contra seus pares niilistas, usam a crítica, mais uma vez, para dobrar a aposta democrática e não para reificar as instituições como meras mistificações de classe.

A verdadeira social-democracia brasileira merece se reunir mais uma vez como força política unificada. Por ora, oscila entre o desconforto da adesão às alternativas sociais-liberais e a convivência com discursos e referências estéticas de uma esquerda anacrônica, aguardando o momento de construir uma força radicalmente democrática e que possa liberar, contra todos os tipos de determinismo, a imaginação institucional a serviço de um mundo melhor. 

*É doutor em Direito pela UERJ 

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