Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Evento discute segurança de barragens patrocinado por Vale e Samarco, mas sem atingidos

A exclusão de vozes críticas e diretamente afetadas compromete a eficácia do debate sobre segurança das barragens

Foto: Christophe Simon/AFP

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Começou hoje, em Belo Horizonte, um seminário para discutir a segurança de barragens de mineração. Seria razoável que entre os convidados estivessem representantes dos atingidos pelos desastres em Mariana e Brumadinho. Contudo, eles não estarão nem entre os palestrantes, nem na plateia.  

Entre os patrocinadores do evento estão a Samarco e a Vale. Cada uma pagou ao menos 75 mil reais em cotas. Na abertura, os participantes ouvirão as palavras do diretor corporativo de geotecnia da Vale e do diretor técnico de projetos da Samarco. Ambos têm experiências terríveis para compartilhar. 

A Vale era a responsável pela barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho, que rompeu em janeiro de 2019 e matou 272 pessoas, além de despejar milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia do Rio Paraopeba. Já a barragem de Fundão, da Samarco, rompeu em novembro de 2015, em Mariana, matando 19 pessoas, destruindo casas e levando lama e devastação para toda a bacia do Rio Doce.

O evento, denominado Seminário Brasileiro de Segurança em Estruturas de Rejeitos, é organizado pelo Instituto Brasileiro de Mineração, o Ibram. O ingresso para quem não é associado da entidade custa 2,2 mil reais.

O diabo está nos detalhes. Depois dos desastres, o Ibram não escreve mais a palavra barragem. Agora é “estruturas de rejeitos”. Alterando terminologias, parece querer mascarar a realidade, numa tentativa de soterrar a memória das mortes sob uma camada de eufemismos.

Cabe aos representantes do Ministério Público e da Agência Nacional de Mineração (ANM) que aceitaram o convite – mesmo sem a presença de atingidos – fazerem o contraponto necessário e não caírem na barafunda de palavras amenas.  


Ao saber que o Ibram chama barragem de estrutura de rejeitos, Mônica Santos, ri. O riso expressa raiva e frustração. “Não espero nada de mineradora. O que mais fazem são coisas às escondidas. Quando assustamos, eles já estão minerando em cima da gente”, afirma Santos, que é membro da Comissão de Atingidos e era moradora de Bento Rodrigues, distrito de Mariana que foi soterrado pela lama da Samarco.

Nos quase nove anos que se passaram desde que a casa de sua família foi varrida pela lama, Mônica se engajou na luta por justiça e reparação, estudou e formou em Direito e, até hoje, a casa da sua mãe não está pronta no reassentamento. 

Governo, instituições de justiça e as empresas responsáveis pelo desastre (Samarco e suas acionistas Vale e BHP), ainda não chegaram a um acordo sobre o valor da repactuação. O primeiro, de 2016, que gestou a Fundação Renova, fracassou. A Renova levou cinco anos para concluir as cinco primeiras casas do Novo Bento Rodrigues. Quando ficaram prontas, 55 vítimas já haviam morrido de causas naturais antes do reassentamento.

Na última sexta-feira (28), o presidente Lula (PT) esteve em Belo Horizonte e foi questionado pela jornalista Cynthia Castro do jornal O Tempo sobre o acordo. “A Vale, vamos ser francos, a Vale está enrolando o povo de Mariana e o povo de Brumadinho”, respondeu o presidente.

Para Santos, as palavras de Lula não são sinceras. “Ele [Lula] já passou do meio do mandato e nunca ouviu o atingido, nunca chamou para sentar em uma mesa e conversar”, reclama, pois esperava que após lidar com problemas urgentes, o presidente Lula fosse dialogar com as vítimas das barragens de Mariana e Brumadinho e “colocar o pé na lama”. Ficou frustrada. Já do governo de Romeu Zema (Novo), ela nunca esperou nada.

Para representar os atingidos, Mônica precisou se fazer ouvir, viajando até a Inglaterra e Austrália denunciando à justiça estrangeira e aos acionistas da BHP os problemas na reparação. Aprendeu, com o passar dos anos, que atingidos não são bem vindos em redutos dos que se beneficiam dos lucros das mineradoras. 

Escrevi uma reportagem a respeito da festa de casamento da filha de um ex-presidente do Ibram. Dos cerca de 25 políticos presentes como convidados, pelo menos 20 tiveram campanhas financiadas por mineradoras ou siderúrgicas nas eleições de 2010 ou na seguinte ao casamento, em 2014.

A festa, que ficou conhecida como “Baile da Lama”, foi em 2013. Na época, as duas barragens não haviam rompido, mas várias vozes já se levantavam pedindo transparência e segurança, entre elas a do diretor de meio ambiente e saúde da União das Associações Comunitárias de Congonhas (Unaccon), Sandoval de Souza Pinto Filho. “A presença de vizinhos das barragens nos debates demonstraria transparência e respeito, atributos fundamentais ao retorno da confiança do povo na atividade”. 

Congonhas está na mesma região de Minas Gerais que Mariana e Brumadinho e a maior preocupação de Sandoval, assim como de grande parte dos habitantes da cidade, é com a barragem do complexo Casa de Pedra, da CSN, localizada a poucos metros de bairros residenciais. Um estudo contratado pela própria empresa, em 2009, estimou que o rompimento da barragem de Casa de Pedra poderia resultar na destruição de 350 casas e na morte de até 1.500 pessoas.

Sandoval desconhece a existência de convite à participação gratuita no evento de representantes da população das principais cidades mineiras cercadas pelas barragens. Por questionar e exigir transparência das empresas, Sandoval foi processado pela CSN junto com outros ativistas em dezembro de 2023.  

“Será que a participação popular nesse tipo de evento não teria como contribuir para melhorar a comunicação à sociedade e para a preparação efetiva para o novo cenário climático mundial”, questiona Sandoval.

Sem convites, resta aos atingidos assistirem a um talk-show entre a presidente da Anglo Brasil, Ana Sanches e o diretor-presidente do Ibram, Raul Jungmann, ex-deputado e ex-ministro nos governos de Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, que será transmitido ao final do evento, na quarta-feira 3. 


Do ponto de vista de quem vive ameaçado por uma barragem (são quase 1 milhão de pessoas no Brasil), um talk-show, além de afrontoso, é estridente como uma sirene de alerta: mineradoras burlam legislações, provocam tragédias, ditam reparações, saem impunes e ainda palestram sobre segurança e boas práticas no setor para seus pares. 

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