Daniel Camargos

Daniel Camargos é repórter há 20 anos e cobre conflitos no campo, especialmente na Amazônia, para a Repórter Brasil. É fellow do programa Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

Daniel Camargos

Quem lê tanta notícia?

Uma reflexão sobre a manipulação política, a influência da religião e a crise do jornalismo 

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“Não foi porque eu perdi. Eu parei de apostar por causa da igreja”, ouvi um jovem contar a outro no balcão da lanchonete, enquanto esperava o pastel. Comi o pastel, tomei um caldo de cana e segui caminhando e pensando em como as pessoas realmente deixam a religião controlar a própria vida.

Passando pelas ruas do centro de Belo Horizonte, a caminho do escritório compartilhado onde costumo trabalhar, vou parando em todas as bancas de jornal. Estão lá: capas de celular, carregadores, pares de meias, cadarços, balas, chicletes, cigarros picados e, raramente, algumas revistas de palavras cruzadas. Pouquíssimas vendem jornais.

Mirava as bancas para ver as manchetes, quem sabe comprar um ou dois jornais, e encontrar um tema para tratar neste espaço. Sem sucesso.

Lembro do rapaz da lanchonete, da frase solta dele e de como me assustei com o controle que a religião exerce. Vou escrever sobre o PL 1904, conhecido como PL do Estupro, uma denominação que infelizmente reflete bem sua natureza. 

De acordo com a proposta, se uma mulher abortar vai para a cadeia com uma pena que tem o dobro de tempo da pena do estuprador se a interrupção ocorrer após a 22ª semana de gestação.

Claro que já havia lido na tela do celular e do computador dezenas, talvez até uma centena, de reportagens e análises sobre a estratégia do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de pautar e aprovar a urgência de tramitação do projeto para chantagear o governo e barganhar um sucessor do seu grupo no comando do Congresso.  

Chantagem, né? Do pior tipo, usando o corpo de meninas como arma de pressão, pois crianças e adolescentes até 13 anos são 61,4% das vítimas de estupro, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Perversidade pura. Uma desgraceira insana que desperta ódio em qualquer pessoa dotada de humanidade. A dose, contudo, passou da conta, gerou reação da sociedade, o povo (majoritariamente as mulheres) tomou as ruas e o que era para ser mais uma extorsão por poder deixou os defensores dessa ideia descabida e medieval totalmente expostos. 

Além das bancadas do Boi, da Bala, da Bíblia, passamos a ter a do Estupro. Aliás, é impressionante como muitos nomes de deputados se repetem representando todos esses interesses.

Uma notificação pisca no celular. Interrompo o que estava escrevendo e leio: “Quase metade dos brasileiros evita as notícias”, indica um relatório da Reuters. Em 2024, a proporção de brasileiros que evitam notícias subiu para 47%. Uma alta de 6 pontos percentuais em relação ao ano passado (41%). 

Os entrevistados afirmaram que o noticiário é “repetitivo e entediante”, e que o fato de a maior parte das notícias ser negativa os deixa “ansiosos e impotentes”. Super entendo os entrevistados. Também prefiro usar meu tempo assistindo receitas com bacon e queijo e vendo vídeos de cachorrinhos fofos fazendo peraltices.

Só não dou bola para fake news; estou do outro lado do balcão no mercado de informação. Há mais de 20 anos o que faço é apurar e escrever notícias. Quando comecei em redações, existiam editores de cabeça branca, telefones fixos que tocavam em sinfonia insana na hora do fechamento, aparelhos de fax e uma sensação doce – e às vezes amarga – que pairava no ar de que o que fazíamos era muito importante. 

Muitas vezes certa, outras tantas errada, mas era uma atmosfera densa, quase mastigável para quem estava ali. Em pouco mais de 20 anos, o que era sólido desmanchou-se no ar.

Em Belo Horizonte, de onde escrevo, jornais que vendiam 150 mil exemplares hoje não chegam a 5 mil. A extrema-direita dominou a máquina de informação online, marginalizou a imprensa tradicional e começou a difundir as informações que deseja, utilizando, claro, fake news para manipular corações e mentes, além de fomentar o ódio. Usando e sendo usada pelas big techs numa aliança nefasta.  

O vazio informacional ou o deserto de notícias se alastrou pelo país. As redações, antes cheias de vida, agora parecem um eco distante de uma era que não voltará nunca. Essa transformação não ocorreu de um dia para o outro, foi um processo gradual, onde o valor do jornalismo foi sendo corroído por interesses políticos e econômicos. 

Não que o jornalismo ou as empresas fossem melhores no passado. O monopólio era quase sempre deplorável também, mas o jornalismo e os jornalistas tinham uma relevância maior na sociedade. 

Hoje, lutamos contra uma avalanche de desinformação que distorce a realidade e enfraquece a democracia. A resistência vem de todos os lados: jornalistas comprometidos, leitores críticos e, principalmente, daqueles que não se deixam levar pela maré de mentiras. Muito provavelmente você, leitor, que chegou até aqui neste texto está do mesmo lado que eu nessa trincheira.  

Afinal, o jornalismo é um compromisso com a sociedade, um dever de informar e esclarecer, mesmo quando a realidade parece dura demais para ser encarada. É nessa resistência que encontramos a essência do nosso trabalho.

Como disse, saí da pastelaria caminhando e pensando, passando pelas bancas de jornal vazias até sentar nesse coworking anódino e escrever esse texto. Na mente, o verso e a melodia de Caetano Veloso em Alegria, Alegria se repete em looping: “Quem lê tanta notícia?”. 

Faz lembrar da necessidade de filtrar, compreender e, acima de tudo, reportar os fatos em meio à marcha para o atraso que o Congresso quer nos levar. 

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