Diálogos da Fé

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A moralidade cristã e a insubmissa Linn da Quebrada

A cantora reivindica o direito a ter dúvida. E como diz um princípio católico, “onde há dúvida, há liberdade”

A moralidade cristã e a insubmissa Linn da Quebrada
A moralidade cristã e a insubmissa Linn da Quebrada
Linn não se deixa dominar pelos padrões
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“Estou procurando, estou tentando entender/

O que é que tem em mim/

Que tanto incomoda você”

Os versos  da música de Linn da Quebrada é uma potente provocação. Ao questionar o incômodo injustificável frente às diferentes possibilidades de ser e estar no mundo, ela semeia a dúvida para fazer brotar conhecimento e compreensão. Infelizmente sua mensagem não frutificará em  mentes e corações que se tornaram desertos áridos de ignorância e de ódio.

Em um mundo alicerçado em certezas excludentes é preciso defender, como ela mesmo reivindica, “o direito a ter dúvida.” Ou mesmo de acordo com o princípio católico do probabilismo: “Onde há dúvida, há liberdade” (Ubi dubium, ibi libertas).

A afirmação de um modelo como universal, portanto válido para qualquer ser humano, em qualquer tempo e espaço e em qualquer corpo, é, no mínimo, incabível. Mais fundo, podemos encaixá-la no que define Pierre Bourdieu como violência simbólica. Na obra “Razões práticas: sobre a teoria da ação”, Bourdieu diz: “As relações mais brutais são ao mesmo tempo tempo, relações simbólicas e atos de obediência”.

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Enquanto a dúvida liberta, a verdade absoluta condena. Pois ao se afirmar princípios morais como universais se nega tudo que não se encaixa neles.

Esta negação é em si uma violência que contribui para outras tantas, como o extermínio silencioso denunciado por Linn, por meio de um sistema médico que não sabe lidar com corporeidades trans, tornando ainda mais vulneráveis essas vidas, ou a eliminação dos estudos de gênero do currículo escolar, forma de perpetuar a desigualdade, a invisibilidade e o genocídio.

Tudo o que diz respeito à moral se apresenta como verdade, mas no fundo é cercado de dúvida. A cada afirmação moralista, e mesmo às mais convictas afirmações religiosas, podemos sempre acrescentar um “será?”

Será que as diferentes experiências humanas, no que se refere à sexualidade, ofendem os princípios cristãos?

Será que Cristo se sentiria agredido pelos LGBTs ou seria o primeiro a colher e defender sua existência?

Será que as identidades humanas podem ser aprisionadas em modelos pré-determinados?

Será que a naturalização de diferenças biológicas não é mais uma forma de limitar nossa existência e, portanto, uma maneira de dominação?

Será que o que importa nas configurações familiares não é o amor e o afeto, mas os padrões morais estabelecidos?

Não seriam os próprios padrões morais os responsáveis pela destruição das famílias, uma vez que rompem laços de afeto em nome de um Deus que pretensamente condena a partir de valores criados pelos seres humanos? 

Linn, assim como outros tantos trans e LGBTs, sofreu na pele o abandono familiar. Em entrevista, diz ter sido criada sob os preceitos de Testemunhas de Jeová e foi muito cedo abandonada pelo pai. Um homem religioso, como outros tantos, que devota tanto amor a um Deus abstrato e que não reconhece, como Linn também aponta, os diferentes “eus” que compõem este “Deus”, o amor concreto que demonstrava Cristo por todos.

A dúvida possibilita a existência de diferentes religiões, assim como é a motivadora da ciência. A dúvida é, pois, o princípio criador. A partir dela é que as respostas, ou apostas, são elaboradas.

Foi a dúvida sobre o “fruto da árvore proibida” que fez Eva questionar as restrições e ir em busca do conhecimento segundo o próprio mito cristão.

A dúvida é de fato um instrumento poderoso, pois nos leva ao conhecimento negado em sua origem. É preciso romper com as determinações sociais, com a submissão, os papéis delimitados para acessá-lo. Essa é a lição que retiramos do arquétipo de Eva, aquela que subverte a ordem, que não se permite dominar, livre.

Assim também é Linn da Quebrada, uma mulher que não se permite dominar pelos padrões. Alguém que não reconhecia sua experiência na arte existente e, por isso, criou sua própria para dar vida à experiência própria e de outras mulheres de todos os corpos, de todas as maneiras de ser mulher.

Com a história de Linn, queremos, neste mês que é referência das lutas das mulheres, homenagear a todas as insubmissas como ela. A todas que, com sua arte, seu corpo, seu trabalho, seus desejos e suas lutas, geram dúvidas, questionamentos, e fazem brotar em meio a sufocantes espinhos as diferentes possibilidades de existência. 

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