Diálogos da Fé

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Iemanjá é negra

Em 2 de fevereiro, é dia de festa no mar. Que tal entender a origem dessa divindade africana?

O sincretismo mudou a forma e as funções de Iemanjá
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“Odô Iyá!” A saudação vem da língua ioruba e quer dizer “Mãe do Rio”. Ora, Iemanjá não é a “Rainha do Mar”? Pois é. Toda cultura é dinâmica. Isso significa que o contato com novas realidades pode transformar tradições que parecem imutáveis em algo absolutamente novo, por vezes, inclusive, dissociado de sua origem.

Embora Iemanjá nunca tenha deixado de estar relacionada às religiões afro-brasileiras, sua representação mais conhecida, aquela que se popularizou no imaginário do nosso povo, está muito distante da mãe africana de seios fartos que reinava e era cultuada nas terras de Abeokutá, às margens do Rio Ogum, na Nigéria.

Primeiro, é preciso compreender como uma divindade ligada aos rios se torna a rainha do mar. Na verdade, Iemanjá é senhora de todas as águas e seu culto se dá especialmente na confluência entre o rio e o mar.

A divindade dos oceanos, Olokun, seria, de acordo com algumas tradições, o pai de Iemanjá (há quem considere Olokun um orixá feminino). Como o culto a Olokun não prevaleceu no Brasil, muito provavelmente porque aqueles que o conheciam não sobreviveram à triste travessia do Atlântico ou não chegaram em número suficiente para perpetuar seus ritos, Iemanjá assumiu também a função de deusa dos mares, tornando-se a “senhora das águas que vêm de Olokun” e transferindo a Oxum a tarefa de cuidar dos rios.

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Seu nome deriva da expressão “Iyê Oman Ejá”, ou seja, “a mãe cujos filhos são peixes”, talvez por isso tenha se tornado também protetora dos pescadores e associada à figura das sereias.

O fenômeno do sincretismo emprestou novos contornos à imagem de Iemanjá. Além da relação com Nossa Senhora, em suas mais diversas fases e faces, houve uma fusão com mitos indígenas, nos quais as histórias das Iaras, Janaínas e mães d’água também deram um toque de misticismo à deusa africana, fazendo surgir a grande mãe de todos os brasileiros, festejada nos litorais de Norte a Sul, com suas longas madeixas, sua túnica azul, suas ancas largas, seu diadema de estrelas e seus braços acolhedores sempre abertos. Odô Iyá!

Os candomblés mantiveram seus traços de origem não só na representação, mas principalmente no ritual. Nos terreiros, Iemanjá continua cultuada com cânticos da tradição nagô e recebe em sacrifício seus animais e comidas prediletas.

Contudo, a mesma imagem que se popularizou por todo o Brasil também está presente nas religiões de matriz africana, que, por não estarem apartadas da sociedade e pelo dinamismo próprio da cultura, absorveram diversos traços do sincretismo. Isso não é necessariamente um problema, a grande questão é quando deliberadamente os traços negros são apagados em processos de apropriação indevida.

Iemanjá e todos os orixás são negros, e antes que alguém diga que energia não tem cor, vale lembrar que ancestrais têm origem e têm história. Como bem definiu Pierre Verger, os orixás são ancestrais divinizados que outrora, devido à força de sua existência, estabeleceram relações com elementos da natureza e com diversas funções sociais.

A função social da maternidade, por exemplo, coube a Oxum e a Iemanjá, sendo a primeira mãe das crianças e a segunda, dos adultos. Como a figura da grande mãe está presente em todas as culturas, tendo sido sorvida inclusive pela tradição católica, por meio do culto às diversas “nossas senhoras”, não foi difícil enquadrar Iemanjá nesse arquétipo, o que certamente facilitou a popularização de seus rituais.

Flores e perfumes cobrem o mar da Bahia todo dia 2 de fevereiro. Na praia do Rio Vermelho, as antigas homenagens à Senhora Santana e a Nossa Senhora das Candeias foram sendo gradativamente substituídas pelas festividades à Rainha do Mar.

Os pescadores foram os grandes responsáveis. Além disso, a resistência da igreja ao sincretismo com as religiões afro-brasileiras fez a celebração de Iemanjá ganhar força. Apesar de toda a exploração turística da festa, os rituais nos terreiros são mantidos e os primeiros presentes são entregues a Oxum, no início da madrugada, no Dique do Tororó, para evitar ciúme entre as deusas e não provocar sua ira.

Na casa dos pescadores, no Rio Vermelho, encontra-se um peji, um altar de Iemanjá, onde devotos depositam pedidos e agradecimentos e de onde partem os balaios em procissão marítima. A consciência ecológica tem crescido entre os adeptos das religiões africanas e muitos procuram evitar lançar ao mar materiais e produtos que não sejam biodegradáveis.

Há também uma corrente que defende outro tipo de homenagem, que não inclua presentes de nenhum tipo, mas a presença e as orações. Talvez ainda levemos um tempo para que essa nova tendência emplaque, mas é importante e necessário incluir no cotidiano dos terreiros as reflexões sobre os riscos ambientais e a responsabilidade de todos com o futuro do planeta.

As tradições de matriz africana são absolutamente inclusivas e buscam promover a reintegração dos indivíduos à natureza. O respeito ao mar, rios, florestas e ao equilíbrio de todos os elementos é essencial, pois os orixás são as forças vivas da natureza e não podem ser cultuados sem que observemos esse princípio. Iemanjá é o mar, é o rio, é a foz.

Iemanjá é a mãe de todos os orixás e de toda a humanidade. Como peixes, somos seus filhos, lançados às águas do mundo, lutando pra sobreviver, vencendo perigos e desafios. Essa mãe que nos protege nos quer fortes e independentes, prontos pra fazer e assumir nossas escolhas. Iemanjá prepara nossas cabeças com discernimento e sabedoria, é a mãe que liberta e segue atenta, pronta pra nos socorrer em qualquer dificuldade.

A essa mãe negra, de seios fartos e ventre abençoado, recorrem todos os brasileiros a cada 2 de fevereiro, a cada 31 de dezembro, seja levando rosas e alfazemas, seja pulando sete ondas, seja num banho de purificação, seja em orações.

Iemanjá acolhe, escuta e atende a todos, por isso tornou-se a deusa de muitos nomes, de muitas cores, para entender a diversidade do nosso povo e promover nossa identidade nacional.

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