Diálogos da Fé

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Mãe Stella de Oxóssi: candomblé e modernidade

A quinta iyalorixá do Axé Opô Afonjá, de Salvador, constrói um legado de respeito à tradição e pleno diálogo com a pós-modernidade

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Oxóssi é o orixá da caça, da fartura, da prosperidade. Senhor das florestas, habilidoso e destemido: um estrategista. Dizem que seus filhos têm uma personalidade arguta e estão sempre abertos ao novo. Mãe Stella é uma boa filha de Oxóssi e faz jus às qualidades do grande caçador, rei de Kêtu.

Nasceu em Salvador, no dia 2 de maio de 1925, e foi iniciada no Candomblé aos 14 anos de idade por Mãe Senhora, a maior iyalorixá da Bahia, conforme cantou Vinícius de Moraes. Com os caminhos devidamente traçados pelos orixás, já era apontada como a sucessora natural de sua mãe de santo. Entretanto, com a morte de Mãe Senhora, foi Mãe Ondina a substituta, frustrando boa parte dos dignitários do Opô Afonjá. Pode-se dizer que este período foi um interregno, concluído em 19 de março de 1976, quando Mãe Stella ascende ao trono de Xangô.

Novos tempos, mas a vocação do Afonjá para a vanguarda, observada desde a época de Mãe Aninha, sua fundadora, renova-se e expande-se. Com um perfil revolucionário, Mãe Stella muda os paradigmas do seu terreiro e mexe com as estruturas do candomblé da Bahia.

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Numa religião que já era pós-moderna mesmo antes do conceito de pós-modernidade surgir, Mãe Stella mantinha seu arco retesado e sua flecha apontada para o futuro, mostrando que entre as grandes mães da Bahia figuraria mais um nome. E ela começou rompendo com o sincretismo religioso no início dos anos 1980, deixando claro que santo de igreja não tinha nada a ver com orixá de candomblé. Teve o apoio formal das grandes casas e seu manifesto contou com assinaturas de Mãe Menininha do Gantois e Olga do Alakêtu, entre outras. Na prática, só o Opô Afonjá e terreiros incipientes promoveram a separação entre ritos católicos e do candomblé.

Mãe Stella seguiu firme. Foi à África e visitou as terras de seus ancestrais, na Nigéria e no Benin. Correu o mundo, participou de congressos, tornou-se escritora e assumiu seu papel de liderança. Uma mulher negra de candomblé, engajada em lutas humanitárias e plenamente consciente das mudanças que queria empreender em sua religião e no mundo.

E começou pelo caminho indicado por Mãe Aninha: a educação. Seus esforços trouxeram para dentro do terreiro uma escola pública, que, muito antes do advento da Lei 10.639/2003, já ensinava às crianças a história, a cultura, a língua e a tradição de seus antepassados africanos e do próprio terreiro. A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos (nome civil de Mãe Aninha) cumpre os desígnios da fundadora do Afonjá, que queria seus netos com anel de doutor no dedo, aos pés de Xangô.

Como escritora, Mãe Stella pôde não só contribuir para a preservação dos costumes do Candomblé, como também propor debates importantes, tratando temas como velhice, rituais, cosmovisão, filosofia, ecologia, comportamento. Defende, por exemplo, que nos tradicionais festejos de Iemanjá, no dia 2 de fevereiro, não se lancem mais ao mar os famosos presentes, preservando assim o equilíbrio e a vida, evitando a poluição.

Cumpre honrosamente a função de iyalorixá. É mãe de uma comunidade enorme, cuja sede abriga inúmeras famílias e se expande para além dos milhares de metros quadrados, que guardam, inclusive, uma parcela de Mata Atlântica nativa. Filhos e filhas espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Um conselho de Obás de Xangô, que já teve entre seus quadros Jorge Amado, Caymmi e Carybé. Terreiro que já foi visitado por Sartre e Beauvoir e por toda a intelectualidade da Bahia.

Em 1999, o Axé Opô Afonjá foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Obras de infraestrutura, projetos sociais e a comemoração dos 100 anos de instalação do terreiro naquele bairro de São Gonçalo, em 2010. Mais de um século de história e uma mãe de santo quase centenária que continua com sua flecha apontada para o futuro.

Aos 92 anos de idade, Mãe Stella segue altiva e ativa, antenada com todas as mídias e redes sociais. Lançou aplicativos e a novidade mais recente: um canal no YouTube. Interagindo com as novas gerações, a iyalorixá promove o diálogo entre o candomblé e a modernidade, comprovando que não existe tradição imutável e que a religião é parte fundamental da cultura de um povo, e, como tal, é dinâmica e precisa acompanhar a mudança dos tempos.

Ao ocupar a cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia, eleita em 2013 por unanimidade, Maria Stella de Azevedo Santos, enfermeira de formação, erigiu-se à imortalidade. Mas iniciada nos mistérios dos orixás, Odé Kayodê, Mãe Stella de Oxóssi, negra, mulher e mãe, traz em sua alma ancestral a herança de Aninha, Senhora, Menininha, Olga, Cotinha, Massi, Runhó e tantas outras, e deixa aos filhos e filhas de Xangô o legado de preservação e resistência, não só na memória e tradição oral, mas em palavras, imagens e sons e em sua obra imortal.

Doutora Stella de Oxóssi, mãe honoris causa, se apenas os que estão dispostos a aprender herdam o futuro, tens a teus pés a eternidade!

 

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