Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

O verdadeiro Evangelho é pela vida

A ética seletiva dos parlamentares que propuseram o PL 1909, apoiados por parte do universo evangélico, ignora problemas que afetam toda a sociedade

Manifestação contra PL que equipara aborto a homicídio. Foto: Mauro Pimentel/AFP

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Nas últimas semanas, as redes sociais foram inundadas por notícias sobre o PL 1904, que, em resumo, propõe uma pena mais severa para a mulher que aborta do que para os estupradores. Em resposta, uma mobilização muito importante começou entre diversos setores evangélicos que, apesar das diferenças doutrinárias, não se sentem representados por essa política de morte. Eles argumentam que essa proposta não reflete os verdadeiros valores da maioria da população evangélica brasileira e não está de acordo com o que a Bíblia afirma sobre a vida humana.

Muitos pastores, pastoras e demais lideranças têm se posicionado nas mídias, apresentando argumentos equilibrados e cheios de bom senso, com a intenção de dialogar com o variado campo evangélico a partir do texto bíblico. Eles têm destacado que tudo o que priva a pessoa de sua dignidade e do direito a uma vida plena ofende a Deus e não pode ser ignorado pelos corações que se declaram seguidores de Jesus Cristo de Nazaré.

No entanto, a ética seletiva dos parlamentares que propuseram esse Projeto de Lei, apoiados por parte do universo evangélico, ignora problemas que afetam toda a sociedade. Questões como a falta de políticas públicas em áreas básicas como educação, saúde e segurança alimentar para as mesmas crianças que a bancada evangélica pretende “salvar” têm sido sistematicamente negligenciadas.

Essa postura implacável de legislar sobre os corpos historicamente subalternizados, violentados e silenciados, como os das mulheres, apelando para um posicionamento inconstitucional, conforme sancionado por aclamação pelo Conselho Pleno da OAB, revela o quão dissociadas da realidade das comunidades essas pseudo lideranças estão.

Segundo o Censo de 2010, a igreja evangélica brasileira é majoritariamente composta por mulheres negras, subescolarizadas, subempregadas e residentes de regiões empobrecidas das grandes cidades. Elas frequentemente sustentam suas famílias sozinhas, pois o “aborto masculino”, ou seja, o abandono dos pais de seus filhos biológicos, é algo recorrente e não surpreende.

Basta uma conversa honesta com essas mulheres, que são presença maciça e sustentam os trabalhos nas comunidades de fé evangélicas por todo o Rio de Janeiro, para obtermos provas suficientes de que o aborto é uma realidade para elas. Isso ocorre por diversas razões, está presente nos diálogos cotidianos e é nelas que as mulheres que sofrem, tanto pelo estupro quanto pelo aborto, encontram acolhimento.


Isso comprova que, nos ambientes onde se vivencia uma fé orgânica, as atitudes são muito diferentes das promovidas pelos políticos que se elegeram com apoio eclesiástico. No entanto, ao se deixarem seduzir pelo poder político, esses políticos abandonaram as práticas comunitárias de fraternidade e solidariedade ensinadas pelo verdadeiro Evangelho.

Fica evidente que os parlamentares da bancada evangélica estão utilizando os corpos das meninas e das mulheres como moeda de troca política, para “testar” o presidente da República. Trata-se de um jogo inconsequente que não preserva a vida e nem diminui os índices altíssimos de estupro, especialmente no âmbito familiar.

É notório que o fato de o Estado ser laico há muito tempo deixou de ser um impedimento para PLs como este, nos quais a Bíblia, o livro de fé de uma determinada matriz religiosa, passa a ser utilizada como uma constituição para legislar sobre todos os cidadãos, inclusive aqueles que não professam a fé cristã.

Como num “Conto da Aia” pindorâmico, vemos as iniciativas para transformar o Estado numa estrutura teocrática se avolumarem diante de nós, nos mais diversos setores da sociedade. Algo assustador que deve nos fazer considerar, com seriedade, o que está em pauta não só neste PL, mas também em outras pautas que têm sido encaminhados no Congresso pelos políticos eleitos às custas de votos religiosos.

Dado que o uso da religião cristã como ferramenta de opressão está em jogo, aqueles que pertencem a esse espectro religioso precisam se posicionar, pois os desdobramentos sociopolíticos desses fatos têm ocasionado a perda de direitos fundamentais para uma democracia saudável.

Mais do que nunca, precisamos adotar um “ecumenismo de guerra”, como descreve o sociólogo Humberto Ramos. Em seus estudos sobre as relações entre a bancada evangélica e os direitos humanos, ele detectou que a unidade entre diferentes ramificações do cristianismo, visando combater um “inimigo” comum, tem surtido efeito positivo.

Se a luta dos evangélicos brasileiros fosse por políticas públicas que priorizassem medidas humanizadoras de saúde, pelo atendimento digno às mulheres que procuram assistência médica para realizar o aborto – compreendendo suas realidades e fazendo o possível para protegê-las dos ambientes inseguros que ameaçam sua sanidade mental e vida física – essa história talvez tivesse outro desfecho.

Quem sabe assim a parcela não-cristã da sociedade teria a chance de conhecer a bela faceta do Evangelho, que prega a possibilidade de testemunhar a vida em sua diversidade, de experimentar a chance de recomeçar e, acima de tudo, de vivenciar uma comunidade humana onde justiça e paz caminham de mãos dadas.

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