Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Se a justiça é seletiva, nossas indignação e luta não podem ser

Observamos de maneira indignada um desfilar de provas contra os mais diferentes políticos, que se mantêm intactos pela proteção de seus iguais

'Será que vivemos de fato uma democracia? Existe na prática um Estado que reconheça e garanta que todas as pessoas sejam iguais?'
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Somos humanos e mortais. Mesmo Lula, que se presume uma ideia, carrega os limites de qualquer ser humano. O tempo de nossa existência é demasiado curto para captarmos os processos históricos que vão bem mais além de qualquer tempo vivido.

Por este limite, o movimento da história é ainda mais difícil de ser compreendido quando estamos nós dentro dele. Compreendemos pouco ou nada dos movimentos que ocorrem no período de nossa curta existência. Mais fácil é entender fatos passados, dos quais possuímos distância e, por isso mesmo, mais objetividade.

Dito isso, aterrizemos nos recentes acontecimentos envolvendo de maneira inédita a prisão de um ex-presidente da República que vêm tomando conta dos noticiários, e de alguma forma, capturando e impondo sentido às nossas atenções e ânimos.

Como todo fenômeno, e particularmente aquele que tem proporções massivas, ele é apenas a manifestação aparente de uma estrutura muito mais profunda e um processo histórico mais abrangente. Tal qual uma pequena ponta de um iceberg, que sinaliza sua existência, mas está longe de resumir sua realidade total.

Mais uma vez somos instados a mergulhar nas camadas sistêmicas deste fenômeno que se encontram submersas, e o preâmbulo foi só para lembrar que esta não é uma tarefa fácil. Contudo, é extremamente urgente e necessária.

Algumas pistas nos são apontadas neste sentido, e elas nos aparecem em forma de questionamentos, suspeitas a respeito do que está dado e aparentemente óbvio. Estamos diante de um momento crucial para refletir a respeito de nossos valores e conceitos do que é democracia, Estado de direito e quais apostas temos feito neste sentido.

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Observamos de maneira indignada um desfilar de provas contra os mais diferentes políticos, que se mantêm intactos pela proteção de seus iguais, ao mesmo tempo em que se dá um processo com celeridade ímpar e de maneira arbitrária contra um político que goza de maioria das intenções de votos.

Logicamente, nos faz questionar a seletividade da justiça e isenção de seus operadores. Mas também não devemos questionar se é possível haver justiça em um sistema assentado sobre bases injustas?

Também se fala e reivindica desde diferentes posições o respeito às instituições democráticas. Mas será que vivemos de fato uma democracia? Existe na prática um Estado que reconheça e garanta que todas as pessoas sejam iguais? Mais uma vez nos perguntamos se isso seria possível dentro de um sistema cujo pilar é a desigualdade. Ou como a frase alterada pelos porcos capitalistas na obra A Revolução dos Bichos, de George Orwell, vivemos um sistema onde “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”?

Quanto mais nos aprofundamos em nossos questionamentos percebemos que aquilo que temos qualificado como um Estado de exceção é, na verdade, a regra que pauta as ações do Estado capitalista. Um sistema de exploração, opressão e morte, que atua de forma autoritária por meio de suas instituições “democráticas” de poder (executivo, legislativo, judiciário).

É importante frisar que tais questionamentos não têm por finalidade minimizar ou justificar os efeitos dos acontecimentos atuais. Pelo contrário: ampliar nossa visão para além de uma situação específica, e com isso a exigência de ações mais abrangentes das que conseguimos vislumbrar no calor do momento.

Neste sentido, precisamos refletir que a prisão de um ex presidente, ou seja, alguém que conta com extraordinários recursos econômicos e políticos em seu favor, tem sim um peso político e simbólico, como mais uma evidência de que o sistema capitalista não encontra limites para seguir seu curso contrário aos interesses da classe trabalhadora. Mas esta está longe de ser a única ou mais grave evidência.

O massacre cotidiano de homens e mulheres, pobres, negras, periféricas, desmascara as violências do próprio Estado contra quem não dispõe de recursos semelhantes, ou não figura nos noticiários, não alcançando, portanto, as emoções públicas.

Lembremos que o posicionamento da Suprema Corte a respeito da prisão após julgamento em segunda instância alterado no início de 2016, atacou violentamente o princípio da Presunção de Inocência previsto na Constituição Federal.

Na ocasião a Pastoral Carcerária manifestou “seu absoluto repúdio contra mais este retrocesso, que fatalmente irá alargar ainda mais as portas de entrada das masmorras brasileiras, onde centenas de milhares de indivíduos, em sua grande maioria jovens, pretos e periféricos, são cotidianamente vilipendiados em sua dignidade e direitos mais básicos”, nos alertando sobre os aprimoramentos desta máquina de moer gente e sobre quem recairia seus efeitos.

É o caso de Rafael Braga, catador de material reciclável, preso portando “Pinho Sol” durante as manifestações de junho de 2013. Foi condenado a 11 anos e três meses de reclusão e ao pagamento de R$ 1.687, adquiriu tuberculose na prisão, sendo solto para cumprir pena em prisão domiciliar quando foi condenado em segunda instância no final do ano passado, sendo indicado seu encarceramento novamente.

Também experimenta dessa seletividade e violência do sistema penal a jovem Bárbara Querino (Babyi), 20 anos, acusada de participar de um assalto no dia 10 de setembro de 2017, quando provas demonstram que ela estava a trabalho na cidade de Guarujá. Encarcerada, Bárbara aguarda julgamento desde o dia 16 de janeiro.

A arbitrariedade também alcançou Padre Amaro, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e defensor da Reforma Agrária na Prelazia do Xingu, mesmas terras em que irmã Dorothy Stang foi assassinada. Padre Amaro está preso desde o dia 27 de março por “associação criminosa”, entre outras acusações feitas por latifundiários e grileiros que nada apresentaram como prova além da própria acusação.

E não nos esqueçamos das vítimas fatais deste sistema, que como bem diz o Papa Francisco, mata. Vítimas da desigualdade que gera fome e miséria, da ilegalidade das drogas e a absurda guerra que pretensamente se faz ao tráfico.

Também lembremos de Irmã Dorothy, de Marielle Franco, entre tantas outras pessoas que foram executadas por irem contra este sistema, não só nos tenebrosos tempos da ditadura civil militar (que ameaça retornar), como também no que se nomeia atualmente como democracia. Também não nos esqueçamos que o Rio de Janeiro está sob intervenção militar por decreto presidencial.

Está claro que as regras deste jogo são criadas, geridas e fiscalizadas por aqueles que detém o poder econômico, político e simbólico, um único poder afinal. E se não está claro o que este assunto faz em uma coluna sobre “fé”, queremos lembrar que a fé cristã exige de nós uma atuação consciente em nossa realidade, denunciando e lutando contra todas as injustiças e iniquidades.

E para aqueles que se escandalizaram com a inscrição “Olhai por nós” no Pateo do Colégio, classificando-a como ato de vandalismo, lembremos que Cristo “vandalizou” o templo que estava a serviço da riqueza e da manipulação por meio da fé. Em seu projeto não cabia a defesa da propriedade e do poder.

Cristo apostava em um movimento de transformação completa da realidade que vivia. Seguindo seu exemplo, se um sistema econômico não é capaz de promover a justiça e a igualdade, o que nos cabe diante dele se não a sua transformação completa? Pois se a justiça é seletiva, nossa indignação e nossa luta não podem ser.

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