Diálogos da Fé

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Xangô é São João?

O sincretismo entre as tradições juninas e as religiões afro-brasileiras revela a resiliência e a criatividade cultural no Brasil. Ao mesmo tempo, também tem sido valiosas as discussões do movimento de reafricanização

Foto: Samuel Alves/Prefeitura de Arapiraca (AL)

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As festas juninas são um período de celebração em várias partes do Brasil, marcadas por danças, comidas típicas e, principalmente, pelas tradicionais fogueiras de São João. No entanto, poucos sabem que essas festividades também se entrelaçam com práticas religiosas do Candomblé e da Umbanda, especialmente nas homenagens aos orixás Xangô e ao Vodun do trovão, Sogbo.

No Candomblé, Xangô é conhecido como o orixá da justiça e dos trovões, reverenciado por sua força e ligação com o fogo. No Candomblé de origem daomena, Sogbo é celebrado como o Vodun do trovão, igualmente associado ao poder das tempestades e dos raios. É comum que os devotos dessas religiões incorporem elementos das festas juninas em suas celebrações, criando um sincretismo único entre as tradições católicas e afro-brasileiras.

Fogueiras e Xangô em Oyó

Apesar dessa interseção cultural, é importante destacar que a tradição da fogueira, tão presente nas festas juninas, não possui raízes nos rituais originários de Oyó, terra natal de Xangô, nem no Benin, onde Sogbo é venerado. Segundo a Dra. Paula Gomes, embaixadora cultural do Palácio do Alaafin de Oyó, a relação dos devotos de Xangô com o fogo é de profundo respeito. “Somente o sumo elegun de Xangô, a pessoa que entra em transe com o orixá, pode se aproximar do fogo. Apenas Xangô tem essa permissão, mais ninguém,” explica Dra. Paula. Ela ainda ressalta que não há qualquer ritualística tradicional que inclua fogueiras em brasas nos templos originários dedicados a Xangô.

O elemento fogo nas celebrações de Sogbo no Benin

No Benin, as celebrações ao Vodun do Trovão também têm uma forte presença do elemento fogo. Em um momento de muita tensão na comunidade, Sogbo dança e caminha rápido por entre os devotos com uma espécie de panela de barro em chamas e labaredas, pronto para anunciar quem serão os novos adeptos que irão adentrar o segredo do culto ao Vodun da Justiça. No entanto, segundo o Professor Titular da Universidade de Sergipe, Dr. Hippolyte Brice Sogbossi, natural do Benin, não há nenhuma presença da fogueira em si que justifique a inserção desse ritual no Candomblé no Brasil.

Essa diferença cultural ressalta que, embora o fogo seja um elemento simbólico importante nas celebrações de Sogbo, ele não se manifesta na forma de fogueiras. Em vez disso, o fogo é representado de maneira mais controlada e ritualística, o que contrasta com as fogueiras exuberantes das festas juninas brasileiras. Essa distinção reforça a ideia de que as fogueiras de São João, adotadas nas celebrações de Candomblé e Umbanda, são uma adaptação cultural única, refletindo a criatividade e a resiliência dos praticantes em harmonizar diversas tradições.

Sincretismo religioso

A inserção das fogueiras nas celebrações brasileiras, portanto, é um exemplo claro de como as tradições podem se mesclar e se transformar ao longo do tempo. As fogueiras de São João, originalmente uma prática católica, foram incorporadas às festividades de Xangô e Sogbo pelos devotos de Candomblé e Umbanda no Brasil, criando uma nova forma de expressão religiosa que reflete a diversidade e a riqueza cultural do país.


Reafricanização

Apesar do sincretismo denotar uma capacidade inerente do povo de perpetuar tradições em harmonia, é crucial reconhecer o papel da colonização, que influenciou e remodelou as práticas africanas para que elas pudessem sobreviver no tempo. Atualmente, há um movimento crescente de reafricanização entre os praticantes do Candomblé e da Umbanda, que busca repensar esse sincretismo e remodelar os cultos de maneira a aproximá-los de suas origens em Oyó e no atual Benin. Esse movimento visa resgatar as tradições ancestrais, preservando a pureza dos rituais originais e reafirmando a identidade africana dentro das práticas religiosas no Brasil.

Para os novos adeptos do Candomblé e da Umbanda, entender esse sincretismo é essencial para apreciar a profundidade de suas tradições. A fogueira de São João, enquanto aquece a noite e ilumina as celebrações, também simboliza a chama do respeito e da adaptação cultural. Celebrar Xangô e Sogbo nesse contexto é uma forma de honrar tanto os ancestrais africanos quanto às tradições que se formaram no solo brasileiro.

As festas juninas e suas fogueiras não são apenas um evento cultural, mas uma manifestação viva do sincretismo religioso, uma prova de que diferentes tradições podem se unir e criar algo novo e belo. Ao mesmo tempo, também tem sido valiosas as discussões do movimento de reafricanização e seus encontros com as tradições seculares dos candomblés no Brasil.

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