Fashion Revolution

Como as chuvas no Rio Grande do Sul prejudicaram os pequenos produtores de moda

O Fashion Revolution Brasil conversou com pequenos produtores locais, donos de marcas e brechós, que relataram os estragos e, principalmente, o poder do trabalho coletivo

Doação de roupas no Rio Grande do Sul. Foto: João Alves/PMSM
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Bate um mês das fortes chuvas sobre o Rio Grande do Sul. A tragédia despertou uma onda de solidariedade, com esforços de reconstrução vindos tanto de dentro quanto de fora do estado. O setor da moda, assim como todos os outros, foi duramente impactado. O Fashion Revolution Brasil conversou com pequenos produtores locais, donos de marcas e brechós, que relataram os estragos e, principalmente, o poder do trabalho coletivo.

Esse “poder” se manifesta mobilização de ajudar a limpar o bairro, arrecadar mantimentos básicos para as famílias afetadas, carregar colchões, e fazer uma rifa solidária com brechós de todo o Brasil. “A gente se reúne no Centro Cultural Vila Flores, no bairro Floresta, em Porto Alegre”, conta Pietra Scheffel, criadora da Akitti, “ficamos sem acesso ao local desde o começo de maio. O ateliê não foi afetado em si, porque fica no 2º andar, mas a comunidade foi”.

A Akitti surgiu da ideia de criar acessórios modulares que podem ser montados e desmontados, permitindo inovação constante e evitando que os usuários se cansem do produto. O principal foco de Pietra no momento é limpar o Vila Flores, pois quem ficou no térreo, relata, perdeu muita coisa.

Olhando para o futuro, Pietra enxerga sinais de esperança, mas também muita preocupação. A Akitti se sustenta graças aos “Akitti Lovers”, um público fiel que, em sua maioria, reside em outros estados. Contudo, as recentes chuvas fortes devem alterar permanentemente a dinâmica de Porto Alegre Por exemplo, no preço do aluguel. “Pode ser que os aluguéis aumentem muito, o seguro das coisas se tornem mais caros”, aponta, lembrando também das dificuldades de manter um espaço físico desde o término da pandemia.

A cooperativa de costura Justa Trama também enfrentou sérios problemas.“Algumas sócias perderam tudo, outras, parcialmente”, aponta Nelsa Nespolo, fundadora. A sede, localizada em Porto Alegre, se transformou em um centro de recebimento e distribuição de doações, atendendo cerca de 700 famílias da região. “Vamos retornar às atividades em 3 de junho, ficamos esse mês assistindo à comunidade e sem energia elétrica.”

Nelsa descreve o pânico causado pelas intensas chuvas: “A água começou a tomar conta e o nosso medo eram os tecidos, porque a gente perderia tudo, não tem como secá-los”. Como medida de contenção de danos, elas conseguiram chamar um caminhão para levar os materiais para um lugar onde a água não os atingissem. A decisão custou 2.500 reais.

Natalia Guasso, idealizadora do brechó Brick de Desapegos, também de Porto Alegre, reflete sobre os próximos passos: “Eu prevejo um ano bem difícil. O que eu consigo enxergar agora é que só ações coletivas e solidárias poderão mudar nosso futuro a médio e longo prazo”. Natalia faz parte de uma dessas ações, chamada “A maior rifa de Brechós em prol do RS”. Criada pelo Espaço Ruta, a iniciativa busca reduzir um pouco das perdas de cada brechó afetado. “É importante neste momento ajudar e apoiar com o que podemos e realizar ações coletivas para minimizar perdas. Estamos com o estado destruído”, afirma.

Próximo de Porto Alegre, Rafael Zahn da Silva, criador da Wayward, tem ajudado tanto no resgate de pessoas, quando carregando colchões e fazendo pequenos ajustes nas roupas recebidas de doações. Dentro do contexto de seu negócio – bonés feitos à mão – ele teve perdas muito grandes: de estoque, maquinário, material como modelagem, tecidos, tesoura, móveis. Webber é de Canoas e conta que seu bairro, Harmonia, um dos mais atingidos, sempre teve problemas com escoamento.

A Wayward, aliás, veio através de uma perda material advinda de grandes chuvas em 2015. “Uma chuva de granizo destruiu o telhado de casa, que ficou toda alagada. Eu resolvi colocar para vender uns bonés que eu havia feito para mim e resolvi seguir com o projeto”. A “sorte” de Webber é que parte dos modelos de peças únicas, feitos de upcycling, estão em um ateliê que divide com amigos no centro – lá, ele conseguiu deixar três máquinas. Agora, enquanto ainda está acomodando a família, ele auxilia a comunidade.

De um ponto que considera “privilegiado” por morar em um bairro alto de Porto Alegre, Helena Soares, psicóloga e psicanalista e criadora do Brechó de Troca, avalia o emocional da população como “a gente tá andando que nem barata, apagando fogo”. Enquanto auxilia atingidos pelo lado psicológico, ela vê o futuro do brechó ainda como um desejo. Antes das chuvas, a ideia era levá-lo para o interior, agora, esse momento deverá ser adiado.

O Brechó de Trocas traz uma proposta diferente, no qual Helena afirma que o encara ainda do seu lugar de psicanalista. “É um espaço de convívio onde a troca é uma desculpa para a gente se encontrar”, explica. Ela abre a roda e deixa que as pessoas apresentem suas roupas: “eu acredito muito na ideia do guarda-roupa como um acervo, uma biblioteca, que vai sendo construido”. O brechó, conta Helena, é também um ato de resistência contra o Fast Fashion e os resíduos têxteis.

Responsabilidade da moda

O excesso de roupas é um ponto de destaque nessas tragédias. Os Correios, por exemplo, já suspenderam a coleta de roupas e sapatos. “Esses cards nas redes sociais que a gente vê ‘doação não é lixo’, nós vivemos isso há décadas”, afirma Helena, que aproveita para pontuar a falta de rede estruturada de reciclagem. “Temos pontos focais específicos, em campanhas de algumas empresas, mas são ações não articuladas com órgãos governamentais”, salienta.

Nelsa exemplifica como a gestão pública pode unir forças com as marcas locais: “a gente conseguiu um contrato com o Grupo Hospitalar Conceição, vamos fornecer durante um ano lençóis e fronhas”. Ela também destaca a importância da comunicação para um consumo mais sustentável, para que as pessoas saibam, por exemplo, a quantidade perigosa de agrotóxicos no algodão convencional.

Esse olhar é parte do que Nelsa constrói na Justa Trama: “acho que é algo que nos dá uma perspectiva de um meio ambiente mais preservado, mais cuidado. Uma perspectiva de olhar pra frente e ver que a gente pode pode sim fazer a nossa parte”. Pietra também fala sobre a mudança comportamental do consumo. “Cada vez mais surgem marcas que tem conceito de sustentabilidade, só que elas não conseguem se manter vivas no mercado”, afirma.

Ela aproveita para relembrar a crença de que o consumo seria mais sustentável no pós-pandemia, o que não se tornou verdade. “A gente teve o contrário, um avanço absurdo das Fast Fashion. Como a gente pode mostrar que é mais legal ter um armário cápsula? Ou tu comprar de brechó?”, questiona.

Trabalhando com upcycling, Webber também fala sobre unir preocupação ambiental com o interesse do cliente. “Às vezes, se tu fizer um produto só de reaproveitamento que não é interessante para ninguém, ele não vai ter uma boa recepção. Toda manifestação artística tem seu valor, mas é importante também atender a necessidade dos clientes”, reflete. Para ele, o momento agora é de unir forças e realizar colaborações entre marcas e projetos, “se apoiando, pensando junto e reduzindo a quantidade de descarte”.

A população do Rio Grande do Sul, destaca Natalia, tem sentido a crise climática desde 2023. E ela vem de uma recuperação custosa do pós-pandemia. “Muitas marcas não conseguiram trabalhar esse mês e a gente sabe que para uma marca pequena ficar um mês sem faturar é complexo, porque não temos um grande caixa de giro”, explica. Por hora, o governador do estado, Eduardo Leite, calcula de seis a um ano para reconstrução da região, mas sabemos que não será somente isso.

A crise climática está em curso. Dessa vez foi o Rio Grande do Sul, mas já foi Manaus (AM), Petrópolis (RJ), São Sebastião (SP), Acre, Maranhão, Pantanal. Para evitar que haja uma próxima vez, o poder público precisa se mobilizar desde já com planos de prevenção, adaptação e mitigação.

E essas ações envolvem a sensibilidade de ouvir e trabalhar junto com a população local, assim como a sociedade civil gaúcha – e as pequenas empresas de moda e brechó ouvidas nesta matéria – tem mostrado diariamente. Há uma nova Porto Alegre para ser construída, e assim deve ser dentro das relações sociais, ambientais, comerciais e intrapessoais.

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