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Anatel ignora lei e atropela Conselho para aprovar plano de metas

Ao desprezar regra que prevê que Conselho Consultivo deve apreciar proposta de revisão de metas de universalização, agência exclui participação social

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Por Flávia Lefèvre*

Visando as privatizações que ocorreram em julho de 1998, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997, estabeleceu que a primeira fase dos contratos de concessão do serviço de telefonia fixa comutada (STFC) teria como termo final dezembro de 2005 e que poderiam ser renovados por, no máximo, mais 20 anos, sem possibilidade de prorrogação.

A LGT também condicionou a possibilidade de prorrogação dos contratos de concessão ao cumprimento das obrigações que foram estabelecidas pelo primeiro Plano Geral de Metas de Universalização (PGMU – Decreto 2.592 de 15 de maio de 1998), que tinha o foco na implantação de redes de suporte ao STFC e de telefones de uso público, bem como o cumprimento de obrigações de continuidade na prestação deste serviço.

Chegado dezembro de 2005, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) certificou o cumprimento das metas estabelecidas pela LGT e os novos contratos de concessão foram assinados pelo prazo de mais 20 anos, com início a partir de janeiro de 2006 e termo final em dezembro de 2025.

Desses contratos, considerando a intensa dinâmica do setor,  constou a previsão de revisão das concessões a cada 5 anos e, nesse contexto, as obrigações de universalização foram sendo redefinidas por meio de mais três decretos: em 2003, 2008 e o último em 2011.

Para a definição dos PGMUs, a LGT estabeleceu que a Anatel deve elaborar uma proposta que, antes de ser encaminhada ao Poder Executivo para edição do respectivo decreto, deve obrigatoriamente passar pela apreciação do Conselho Consultivo da agência. Isto porque o Conselho Consultivo é o órgão de participação institucionalizada da sociedade civil nas atividades e nas decisões da Agência, cujos 12 participantes representam o governo, os consumidores, organizações da sociedade civil e as empresas, sendo indicados pela sociedade civil ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e nomeados por decreto do Presidente da República.

Ocorre que, justificando as críticas das quais a Anatel vem sendo alvo, há anos, algumas inclusive feitas por diversos acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), apontando atuação que privilegia os interesses dos agentes econômicos regulados em detrimento dos interesses dos consumidores e falta de transparência, a agência e o Poder Executivo têm deixado há anos de agir no sentido de nomear todos os membros para o Conselho Consultivo, que muitas vezes fica sem quórum para tomar decisões.

É o que está acontecendo neste exato momento. O Conselho Consultivo não tem membros nomeados nem para garantir o quórum mínimo, em razão do que o processo de revisão quinquenal dos contratos de concessão, que já deveria ter sido finalizado em dezembro de 2015, está pendente, pois depende da apreciação do PGMU pelo Conselho Consultivo para que possa ser enviado ao MCTIC.

  conselho.JPG Conselho Consultivo da Anatel em raro momento de participação em 2016 (Anatel)O histórico de não nomeações de integrantes para o Conselho Consultivo revela fato grave: todos os governos, sem distinção, desde a instalação da agência em 1997, foram relapsos e descomprometidos com a garantia de participação da sociedade nas decisões de grande importância ocorridas no âmbito da Anatel.

E é nesse contexto a mais recente ilegalidade perpetrada pela agência. No último dia 30 de maio, o atual presidente da Anatel anunciou que não iria mais esperar a aprovação do PLC 79/2016, que propõe alterações radicais na LGT, para assinar os contratos de concessão e que também iria ignorar a obrigatoriedade de o PGMU passar pelo Conselho Consultivo, como determina a lei, por impossibilidade de realização das reuniões e, sendo assim, já encaminhou a proposta ao MCTIC.

É lamentável que o presidente da Anatel tenha omitido no ofício, por meio do qual encaminhou a proposta de PGMU ao MCTIC, que a última reunião, marcada em janeiro de 2017 para a análise pelo Conselho Consultivo, foi cancelada por ordem dele, sob a alegação de que a agência não possuía recursos para arcar com as passagens aéreas dos conselheiros. Afirmo isso porque fui membro do conselho até fevereiro deste ano.

O descaso da Anatel e do MCTIC quanto a respeitar os instrumentos legais instituídos com vistas a revestir de algum grau de democracia a definição de instrumentos regulatórios voltados para o cumprimento de políticas públicas de telecomunicações é inadmissível. Primeiro porque houve um desgaste enorme de recursos financeiros e humanos da agência em processos de elaboração de propostas tanto de contrato de concessão quanto de plano geral de universalização e também de revisão do Plano Geral de Outorgas, ignorando a LGT e tomando por base um projeto de lei altamente  controverso. Tanto é assim que o PLC 79/2016 está judicializado no Supremo Tribunal Federal (STF) e, por força disto, com o trâmite suspenso no Senado Federal.

Ou seja, a Anatel gastou tempo e dinheiro público num processo realizado sem nenhum respaldo legal, atrasando a revisão dos contratos de concessão ou mesmo uma outra decisão no sentido de antecipar o vencimento desses contratos e estabelecer um novo caminho com base nas diretrizes fixadas na LGT que está em vigor. Algo que poderia contribuir para a definição de novas políticas públicas que induzissem a novos investimentos em redes de fibra ótica para dar suporte ao acesso a Internet em banda larga, atendendo às demandas da sociedade, abrindo a oportunidade de utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), estendendo-se o regime público para a infraestrutura que dá suporte à banda larga.

É o que as entidades envolvidas há anos na Campanha Banda Larga é um Direito Seu! vêm propondo com respaldo no art. 65, da LGT.

A edição de decreto do novo PGMU sem discussão  com a sociedade civil, especialmente neste momento, é extremamente preocupante, posto que a proposta elaborada pela Anatel reduz radicalmente obrigações de universalização e deixa de utilizar saldo bilionário em favor dos consumidores. Saldo este decorrente de processo de troca de metas ocorrido em 2008 e que deveriam ser utilizados em favor da implantação pelo menos de “backhaul – infraestrutura de rede de suporte ao STFC para conexão em banda larga, interligando as redes de acesso ao backbone da operadora”, conforme definição do Decreto 6.424/2008.

Está claro, então, que a Anatel e o MCTIC não têm interesse de discutir políticas públicas com a sociedade civil. Se tivessem, atuariam no sentido de manter o Conselho Consultivo completo e funcionando de modo a estimular os debates e abrir espaço para que outros agentes menos poderosos do que as grandes concessionárias do STFC – que hoje concentram o market share também da telefonia móvel e do serviço de acesso à Internet – pudessem contribuir de forma mais intensa para o processo regulatório.

E com sua resistência para os processos democráticos, estes órgãos atropelam os princípios da administração pública e contaminam os atos da agência, que vêm sendo reiteradamente questionados pelo TCU e Ministério Público, de quem esperamos providências urgentes, diante dessas novas e graves ilegalidades.

 *Flávia Lefèvre é advogada, conselheira na PROTESTE – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e atualmente representa a sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.BR)

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