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Compra da Time Warner pela AT&T não pode ser acatada no Brasil

A fusão das duas empresas viola a Lei do SeAC e pode levar à ampliação da concentração no setor. Tema foi discutido pela CCTCI da Câmara

No Brasil a AT&T opera por meio da SKY e a Time Warner reúne Turner, HBO e Warner
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Por Helena Martins*

Um negócio bilionário originado nos Estados Unidos pode colocar em risco a legitimidade da Lei 12.485/11, conhecida como Lei do SeAC, fruto de anos de discussões e acordos sobre a organização do setor da TV paga no Brasil. Trata-se da proposta de aquisição, pela AT&T, que no Brasil opera por meio da SKY, da Time Warner, que reúne Turner, HBO e Warner Bros.

O negócio já foi aprovado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e tem sido objeto de discussões na Ancine e na Anatel. O tema foi objeto de audiência pública no dia 04/09, na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Inovação (CCTCI) da Câmara dos Deputados.

A Lei 12.485/11 proíbe, em seu artigo 5º, o controle ou a titularidade de participação superior a 50% do capital total e votante de empresas prestadoras de serviços de telecomunicações por concessionárias ou permissionárias de radiodifusão, bem como o controle ou a titularidade de participação superior a 30% do capital total e votante de concessionárias e permissionárias de radiodifusão e de produtoras e programadoras com sede no Brasil, de forma direta, indireta ou por meio de empresa sob controle comum, por prestadora de serviços de telecomunicações.

Apesar da lei e da reconhecida validade de seu mecanismo anticoncentração por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), a integração daquelas companhias, exemplo da lógica de convergência que tem levado à ampliação da concentração nos mercados de comunicação em todo o mundo em torno de poucos grupos transnacionais, tem ganhado espaço no Brasil. Em outubro passado, o Cade aprovou a fusão, recomendando apenas “remédios” tópicos como a criação de uma superestrutura de controle externo e medidas voltadas à eliminação de riscos de exclusão de concorrentes.

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Ao avaliar o pedido das companhias, o órgão antitruste do Brasil não considerou a Lei 12.485/11. Centrou-se apenas na dinâmica concorrencial e da não interferência no âmbito da regulação. Ora, ocorre que a referida norma trata exatamente de tal dinâmica e expressa o intuito, por parte do legislador brasileiro e de organizações da sociedade civil que participaram da sua elaboração, de evitar o controle, em poucas mãos, de todas as etapas da cadeia produtiva da comunicação.

No momento em que tal definição foi tomada, pesou a preocupação com a reserva de espaço para o conteúdo nacional, tendo em vista que as empresas que buscam abocanhar mercados em todo o globo são transnacionais, em geral, norte-americanas, e das dificuldades de grupos nacionais, regionais e locais de concorrerem com elas.

A Globo teve participação intensa nessa formulação, mas é algo que não interessa apenas a ela. Se o maior grupo de mídia do Brasil reconhece a inviabilidade de disputar com concorrentes de peso, imaginem a situação de empresas emergentes ou de caráter independente.

A própria Constituição Federal, aliás, proíbe o monopólio e o oligopólio nas comunicações. Tal importância deve-se ao fato da mídia ter um papel central não só econômico, mas também ideológico, impactando fortemente a construção de valores, subjetividades e o próprio conhecimento sobre o que se passa no mundo e, claro, no Brasil.

Mesmo que essa característica elementar das comunicações fosse ignorada, ainda restariam argumentos estritamente econômicos para considerar inapropriada tal fusão. As empresas em questão já atuam em mercados extremamente concentrados, os quais chegam a adquirir a conformação de duopólios.

A SKY, que passou a ser controlada pela AT&T após esta adquirir a DirecTV, ocupa a segunda posição em termos de número de assinantes da TV paga no Brasil. A companhia controla 28% do total, enquanto a Claro detém 52% do mercado. Nenhuma outra concorrente alcança 10% do número de assinantes, segundo dados da Ancine de 2017.

Já a Time Warner divide com o Grupo Globo a liderança no setor de programação. Das 40 programadoras e dos 200 canais existentes no mercado de TV por assinatura brasileiro, a Time Warner possui 10 programadoras e 56 canais, o que representa 26,32% e 28% do total, respectivamente.

A Globo, por sua vez, tem 6 programadoras e 60 canais, o que representa percentuais de 15,79% e 30%. Quanto ao total de programadoras, nenhuma outra concorrente chega a 5,5%. Em relação aos canais, não há outro grupo que alcance 10% da soma total. Em ambos os casos, as concorrentes que mais se aproximam desses números também são transnacionais.

Não à toa, em longa nota técnica dirigida ao Cade, a Ancine considerou que a AT&T exerce poder de mercado na atividade de empacotamento, ao passo que a Time Warner, na de programação. Diante desse quadro, a agência – que passou a deter atribuições regulatórias a partir da Lei do SeAC, alertou sobre a tendência à ampliação da concentração e os problemas que podem derivar dela, como a dificuldade de entrada de grupos de pequeno porte, maior facilidade para exercício da discriminação por preço e exercício de poder de mercado capitaneado entre os grupos líderes no setor de programação.

Essa, contudo, ainda não é a manifestação final da Ancine. Na última semana, a agência divulgou cronograma de debates sobre o tema, mas não parece haver espaço para uma mudança de posição tão brusca. Quanto à Anatel, a situação é mais delicada. Há, internamente, divergências de abordagem. Técnicos da Anatel, primeiro, emitiram parecer considerando que a regra determinada pela Lei do SeAC só vale se as programadoras tiverem sede no Brasil. Já procuradoria especializada da Anatel posicionou-se referendando o entendimento de que a integração viola o artigo 5º da norma.

O primeiro posicionamento desconsidera a atuação concreta da Time Warner no Brasil, por meio de escritórios e práticas comerciais, inclusive a adoção de medidas determinadas pela legislação brasileira, como as cotas de programação, optando por um entendimento restrito que vincula o respeito à legislação do país à administração do conglomerado em território nacional.

Aliás, esse entendimento tem sido propagandeado pelas interessada como forma de justificar a suposta validade do negócio. Se fosse assim, a legislação nacional seria incapaz de incidir sobre as diversas empresas transnacionais que atuam no Brasil em diferentes setores. Com isso, o mundo seria um espaço aberto e desregulado para o interesse desses grupos capitalistas e estaria sacramentado o fim do Estado nacional.

Não parece ser o melhor caminho a seguir, afinal cada local deve ter autonomia para definir suas regras e, como já argumentamos aqui, o Brasil já fez suas escolhas em relação à integração das atividades de programação e de distribuição, bem como já decidiu – e essa definição constitucional deveria ser respeitada de fato e não ainda mais fragilizada – que as comunicações não podem ser dominadas por poucos grupos.

Na nossa avaliação, é esse o entendimento que deve guiar o olhar das diferentes instituições brasileiras quando o assunto é comunicação. E isso deve ser feito em conjunto, já que não há apenas um regulador responsável pelos setores impactados por esse movimento, e de forma harmônica entre elas, tanto para o caso que agora ocupa o centro do debate quanto em relação aos outros que certamente virão, pois hoje o interesse das operadoras é de avançar sobre outros mercados, como o de vídeo sob demanda e serviços associados à Internet.

Precisamos de mais e não de menos diversidade na mídia. Se essa demanda já estava posta para o cenário do século XX, ela se torna ainda mais evidente no século XXI, dada a centralidade das comunicações, em suas múltiplas formas e tecnologias, na sociedade.

*Helena Martins e jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, professora da Universidade Federal do Ceará e integrante da coordenação do Intervozes

 

 

 

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