Intervozes
Governo Temer paralisa funcionamento do Comitê Gestor da Internet
Há mais de um mês parado, órgão considerado referência internacional na governança multissetorial da rede espera portaria com nomeação da nova gestão


Por Marina Pita*
Pouca gente conhece o Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br). Boa parte desse desconhecimento é resultado de seu sucesso em realizar suas atribuições. Desde que foi criado, em 1995, os brasileiros nunca tiveram que questionar o órgão, cuja tarefa mais conhecida do público é a coordenação da atribuição de endereços Internet (IPs) e do registro de nomes de domínios, usando o ‘.br’. Mas o CGI.br faz mais do que isso.
Composto por representantes do governo, setor privado, sociedade civil e especialistas técnicos e acadêmicos, é ele quem tem a tarefa de estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da rede no Brasil, como estabelecido no Marco Civil da Internet e em seu decreto regulamentador.
Nos círculos especializados em governança da internet, em nível nacional e internacional, o reconhecimento do Comitê é exemplar. Entretanto, o órgão corre risco de desmonte, como tantas outras políticas à mercê do governo ilegítimo de plantão. A ameaça à internet livre e aberta como conhecemos até hoje é enorme. Há mais de um mês, espera-se, da Casa Civil e do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, a formalização da última etapa do processo que elegeu a nova gestão do Comitê: a edição de uma portaria interministerial nomeando os novos integrante do CGI.
Num contexto em que Temer abandonou tudo para cuidar de sua própria sobrevivência, a demora seria até compreensível. Mas o ainda coordenador do CGI.br, Maximiliano Martinhão, fez mais: determinou que as atividades do órgão fossem paralisadas enquanto as nomeações não saírem. Nesta quinta-feira 6, a Coalizão Direitos na Rede, articulação que reúne dezenas de entidades que atuam em defesa dos direitos dos cidadãos e cidadãs relacionados à Internet, enviou uma carta ao governo solicitando urgência na publicação da portaria.
A paralisação do funcionamento do órgão é temerosa porque não é de hoje o incômodo de determinados setores, notadamente os operadores privados e a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), com as ações do CGI.br. A título de exemplo, em fevereiro, o CGI.br se manifestou publicamente contra o estabelecimento da franquia de dados na internet fixa. À época, o portal Convergência Digital registrou que a resolução do Comitê foi aprovada “sob protestos da Anatel”, que havia defendido publicamente a permissão solicitada pelas operadoras.
Antes disso, o CGI.br foi, desde sempre, um importante defensor da neutralidade de rede – outro calo no pé das teles em busca de modelos de negócio mais lucrativos às custas do prejuízo dos usuários. Em tempos em que o mundo todo, incluindo o Brasil, se debruça sobre questões como liberdade de expressão nas redes, bloqueio de aplicativos, privacidade e proteção de dados pessoais, o posicionamento do CGI.br sobre esses temas se mostra fundamental.
Em dezembro passado, durante do Fórum de Governança da Internet no México, evento organizado pelas Nações Unidas sobre o tema, um conjunto de organizações da sociedade civil de mais de 20 países já manifestavam preocupação e denunciaram as tentativas de enfraquecimento do CGI por parte da gestão Temer. Num manifesto, lembraram que membros do governo chegaram a declarar abertamente que pretendiam rever a força da sociedade civil dentro do órgão. A não nomeação dos representantes da sociedade civil eleitos e a ordem de paralisação do Comitê agora não são, portanto, meros frutos da crise política que assola Temer.
Por que o CGI.br se tornou referência internacional
O CGI.br conseguiu algo que muitos países desejam: colocar os diversos atores interessados na governança da Internet para discutirem e tomarem decisões juntos. Deste processo, em seus quase 20 anos de operação, nasceram pesquisas, estudos, espaços e cursos de formação e documentos estratégicos para a internet e os internautas do Brasil. Um dos mais importantes, reconhecido internacionalmente como um modelo a ser seguido, é o Decálogo de Princípios para a Governança da Internet no Brasil, que norteia o uso e desenvolvimento da Internet no país.
Mas não são apenas a composição multissetorial e o funcionamento equilibrado e plural do órgão que fizeram do Comitê Gestor da Internet uma referência global no tema. As atividades que o CGI.br tem executado para buscar garantir uma internet aberta e acessível a todos no país são exemplares.
Em dezembro de 2016, por exemplo, em iniciativa inovadora, o Comitê colocou em operação uma rede de entrega de conteúdo (CDN, na sigla em inglês) para reduzir o custo de operação dos provedores de fora do eixo Rio-São Paulo, facilitando sua operação e, assim, ampliando o acesso a uma conexão de qualidade no restante do país.
Uma CDN guarda cópias dos conteúdos mais acessados pelos internautas brasileiros, em geral armazenados nos Estados Unidos e Europa, de forma que o custo de transporte desses dados seja menor para os provedores de acesso na hora de entregá-los aos usuários do país. A medida também evita degradações na qualidade do conteúdo, que podem ocorrer durante do transporte dos dados por distâncias maiores. É um exemplo de política pública que considera as características técnicas da rede e o ecossistema brasileiro, executada a serviço da garantia de direitos da população – como o acesso à informação e a liberdade de expressão.
Em tempos explosão no consumo do vídeo sob demanda, a iniciativa é coerente com a necessidade de otimização do tráfego, redução de custos e garantia de qualidade, sem, no entanto, onerar o usuário. Pelo contrário, garante que mais pessoas possam usar os serviços, em contraposição a propostas como a liberação de franquia de dados no serviço de acesso à rede fixa e a violação da neutralidade de rede. A primeira OpenCDN do CGI.br foi inaugurada em julho, em Salvador, e há uma segunda plenejada para Curitiba.
Outra importante iniciativa do Comitê foi a estruturação de pontos de troca de tráfego, num projeto denominado IX.br, que oferece a infraestrutura necessária para a interconexão direta entre as diferentes redes, comerciais e acadêmicas, que compõem a Internet brasileira. Uma das principais vantagens deste modelo é a racionalização dos custos, uma vez que os balanços de tráfego são resolvidos direta e localmente e não através de redes de terceiros, muitas vezes fisicamente distantes. Com os pontos de troca, uma rede também pode ter maior controle sobre a entrega de seu tráfego o mais próximo possível do seu destino, gerando melhor desempenho e qualidade para seus clientes e operação mais eficiente da Internet como um todo.
Tudo isso financiado pelos recursos arrecadados com o registro dos domínios .br. Só esta façanha comprova a importância do CGI.br para o país. Não é razoável, portanto, que um governo se utilize de uma manobra burocrática para impedir o pleno funcionamento do órgão que tem sido um exemplo para o mundo de diálogo e boa gestão da governança da Internet.
* Marina Pita é jornalista e integrante da Coordenação Executiva do Intervozes.
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