O que o ‘PL da Gravidez Infantil’ e a devastação da Amazônia têm em comum?

Modelo de negócio das plataformas digitais é porteira aberta para ultraconservadores e sua sanha pelo controle de corpos-territórios

Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil

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Por Iara Moura e Kel Baster

A Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira (PP-AL), assentiu no último dia 12 de junho, o requerimento de urgência do Projeto de Lei 1904/24, apelidado de “PL da Gravidez Infantil”. Se aprovado, o PL proibirá o aborto depois da 22ª semana de gestação, inclusive em casos de estupro. A medida torna o procedimento crime de homicídio, quando realizado após o limite da idade gestacional estipulada, afetando principalmente meninas. Diante de tão chocante retrocesso, cumpre perguntar: a quem interessa e quem lucra com o avanço patriarcal, misógino e cis-hetero-normativo sobre os corpos-territórios das mulheres, meninas e pessoas que gestam? Parece que a resposta aponta para os mesmos interesses de quem quer deixar passar a boiada do agronegócio e dos megaprojetos sobre territórios quilombolas, indígenas, aprofundando e acelerando os conflitos socioambientais e a devastação da Amazônia.

É esse o caso dos deputados federais Abilio Brunini (PL/MT) e Coronel Fernanda (PL/MT), que junto a outros 29 deputados assinaram o pedido de urgência do PL da Gravidez Infantil e que também figuram como produtores de desinformação socioambiental com impactos negativos sobre a Amazônia Legal e seus defensores. A fórmula de manipular, distorcer e tirar informações de contexto, influenciando a opinião pública, tem sido estratégia de angariar poder político por figuras públicas da direita e extrema direita.

Pauta moral e desinformação

A chamada “pauta moral” ou “de costumes” utilizada pela mídia comercial é parte estruturante da estratégia desinformativa das 32 figuras públicas analisadas pelo Intervozes e 14 organizações amazônidas na pesquisa Amazônia Livre de Fake, lançada no último dia 6 de junho. O levantamento analisou 192 conteúdos desinformativos difundidos por políticos do Amazonas, Mato Grosso e Pará durante todo o ano de 2023. Utilizar de ideias extremistas, pautadas em bases religiosas institucionais e instrumentalizadas, e nas emoções sobre ciclo de vida e morte, tem sido o mote que caracteriza as regras sociais consideradas adequadas por essas figuras públicas.

Porém, é justamente nesta disputa de narrativa que é necessário substituir os termos por agenda de direitos. Essas representações políticas estão demarcando quais agendas devem ter prioridades no extermínio da diversidade social. Junto a Amália Barros (PL/MT), Jayme Campos (União Brasil/MT),  Coronel Fernanda (PL/MT) e outros 10 políticos do Mato Grosso analisados, Abílio recorrentemente tenta difamar e criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), associando o movimento ao terrorismo. Já a Deputada Coronel Fernanda tem atuação destacada na produção de desinformação sobre o Marco Temporal e de ataques à população LGTBQIAPN+.

Outras abordagens desinformativas recorrentes dos parlamentares mato-grossenses estão relacionadas à instalação da Ferrogrão, via férrea que visa interligar o Porto de Miritituba, no Pará, ao município de Sinop, no Mato Grosso. No âmbito estadual, os alvos da desinformação foram a alteração de gestão do Parque Chapada dos Guimarães, à época; o PL da pesca conhecido como “Transporte Zero” (que foi aprovado no final de 2023, Lei 12.197/2023), que proíbe pescadores de transportarem e venderem pescado por cinco anos; e a suposta destruição de maquinários em fiscalizações de órgãos ambientais.


Abílio, que já tem se colocado como pré-candidato à prefeitura de Cuiabá nas eleições de 2024, utiliza multiplataformas digitais e apresenta altos números de publicações e interações nas redes sociais. Seu maior destaque é no Tik Tok, onde conta com o maior número de seguidores (362 mil)  e interações (34 milhões) entre todos os políticos analisados. Em 2022, chegou a afirmar em uma entrevista de podcast que uma adolescente de 14 anos, vítima de estupro, tinha responsabilidade sobre o ato e que não deveria ser considerado vulnerável. A entrevista foi publicada por um influenciador no X (ex-Twitter) e foi retirada do ar pela plataforma após o parlamentar entrar com um processo jurídico contra o influenciador e vencer a causa.

Devastação de direitos

Com as eleições municipais se aproximando, preocupa o avanço das políticas de retrocessos em direitos sexuais e reprodutivos em âmbito local. Há crescimento de frentes parlamentares contra o aborto legal, em pelo menos 14 estados brasileiros: Acre, Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe, sendo que cinco foram lançadas somente em 2023: Espírito Santo, Góias, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná. Esse movimento bastante capilarizado vem atuando para modificar as constituições estaduais e aumentar a pressão no Congresso Nacional para retrocessos no âmbito dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, como estamos presenciando agora.

Ainda sobre o caso do Mato Grosso, em maio de 2023, foi criada a Frente Parlamentar para combate ao aborto, pelo deputado estadual Gilberto Cattani (PL), também monitorado pela pesquisa Amazônia Livre de Fake. Essa frente defende a versão de que a vida existe desde o primeiro instante da gestação.

Ela é composta apenas por homens que costumam utilizar discursos misóginos para incutir pânico moral e teorias conspiratórias, ao mesmo tempo que defendem projetos econômicos caros ao agronegócio e mortais a indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais sem terra. Num dos conteúdos analisados, Cattani utilizou o perfil no Instagram no dia 17 de setembro para, junto a seu assessor André Maxinimino, fazer campanha antiaborto na esteira da discussão no Supremo Tribunal Federal (STF).

O político capitaneou, em outubro de 2023, a CPI da Invasão Zero e posteriormente criou a Frente Parlamentar Invasão Zero na Assembleia Legislativa do Mato Grosso. O objetivo da frente é coibir e criminalizar as ocupações dos movimentos de luta pela terra.

Os exemplos citados demonstram uma convergência de interesses e uma articulação política poderosa entre setores econômicos que se utilizam de mecanismos discursivos desinformativos para emplacar agendas políticas antidireitos. Tal estratégia lança mão de investimentos crescentes, revertidos em lucro para as plataformas digitais, como em publicações pagas antiaborto e a favor do PL 1904/24.

Na pesquisa Amazônia Livre de Fake foi possível identificar o uso de dinheiro público para a veiculação de anúncios com conteúdo misógino, transfóbico e de ataques à população LGBTQIAPN+ e aos direitos sexuais e reprodutivos. Nas redes sociais, os políticos analisados investiram 13 mil reais de recursos públicos em 68 anúncios pagos com temática socioambiental que possuíam desinformação. Apesar de não configurar um alto custo, foi o suficiente para obterem mais de 4,5 milhões de interações nas postagens.

O PL 1904/2024, que pode ser votado a qualquer momento sem passar por comissões, prevê uma alteração na lei penal sobre o aborto, segundo a qual o procedimento é permitido em casos de estupro, risco de vida ou diagnóstico de anencefalia fetal, sem limite de idade gestacional. As principais afetadas serão crianças, especialmente meninas de até 13 anos, que representam mais de 60% das vítimas de estupro no país, segundo dados do último Anuário Brasileiro de Seguranças Pública (2023). A demora na descoberta dessa violência, na maioria das vezes, causada por um homem familiar da vítima, expõe essas meninas a um ciclo de violências e vulnerabilidades que pedem mais cuidado e proteção, e não negação de seus direitos.

Em mais um episódio de retrocesso humanitário da história recente do Brasil, aqueles que buscam violar os corpos-territórios das mulheres, das dissidências de gênero e dos territórios da Amazônia encontram, nos modelos de negócios das plataformas digitais, porteiras abertas para influenciar a opinião pública.

Enquanto direitos são devastados, a Meta supera a expectativa de receita e lucro no primeiro trimestre de 2024 com receita de US$ 36,455 bilhões, 27% maior na mesma base comparativa. O Tik Tok, por sua vez, está prestes a se tornar a maior rede social do mundo e já fatura US$ 120 bi por ano, segundo levantamento do Financial Times.

Fazer frente às políticas de morte que avançam sobre os corpos-territórios passa também por desmontar as engrenagens tecnológicas-discursivas e de mercado por onde se articulam, e se espraiam, os podres poderes.

Iara Moura e Kel Baster são feministas e integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.


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