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Rio sob o ethos militarizado e midiatizado

Intervenção militar decretada na cidade é fruto da construção midiática das favelas como inimigo público e do medo unido ao racismo institucionalizado

Alunos da rede pública do Rio caminham ao lado de militar na favela Kelson's, na terça-feira 20
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Por Renata Souza*

O Ethos Militarizado significa a sujeição do cotidiano da favela à lógica militar. Nesse sentido, o ethos, palavra grega que qualifica sociologicamente os costumes, hábitos, valores e ética de um povo, é contaminado por uma lógica belicista, militar e letal. E isso se expressa na opção política por um modus operandi de segurança pública militarizada, seja por meio das generalizadas operações policiais ou mesmo pela naturalização da utilização das Forças Armadas do Brasil em favelas.

A “intervenção federal” no Rio, decretada em 16 de fevereiro de 2018, também obedece à lógica de um ethos militarizado a serviço de um outro ethos, o midiatizado, como bem salientou Muniz Sodré. Não é por acaso que no editorial do jornal O Globo, no mesmo dia, afirma-se: “A intervenção irá até 31 de dezembro. Talvez seja pouco”. Quer mais?

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É importante recuperar fatos, já que a lógica da militarização já está em curso. A Maré, por exemplo, esteve sob o regime de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), medida que permitiu aos militares atuarem como força de Segurança Pública, durante 15 meses e custou 600 milhões de reais aos cofres públicos.

À época do momento da ocupação, coberta como exemplo de sucesso pela mídia, a prisão de civis por crime militar tomou como base o artigo 9º (que trata de crimes militares em tempo de paz) do decreto-lei 1.001 de 21 de outubro de 1969, assinado pelo general Artur Costa e Silva, sucedido pelo general Emílio Garrastazu Médici, ou seja, em plena ditadura militar. As pessoas que foram detidas hoje respondem na Justiça Militar.

Houve muitos impactos sentidos no cotidiano da favela, ocultados, porém, nos meios de comunicação. Toda e qualquer atividade cultural e comunitária, principalmente aquelas que ocupavam as praças e ruas da favela, foram submetidas a uma nova norma e, portanto, deveriam ser precedidas de pedido de autorização ao Comando Militar da “Força de Pacificação”. Essa ação demonstra a aposta no controle e vigilância militar sobre a dinâmica e o cotidiano comunitário, evidenciando esse ethos militarizado. Imagine você o que é ter uma vida militarizada?

Vale lembrar casos emblemáticos e mais graves. Em fevereiro de 2015, uma Kombi, que fazia o transporte alternativo entre Maré e Bonsucesso, e um carro de passeio com jovens torcedores do Flamengo, ao transporem as barricadas erguidas pelo Exército, foram metralhados. Entre os baleados, o mais grave foi o jovem Vitor Santiago, que, após ficar em coma, teve uma de suas pernas amputadas.

Neste contexto, a mídia, muitas vezes, se utilizou dos argumentos das fontes reconhecidas como “oficiais”, como governantes e forças policiais, para legitimar toda ação ou política de segurança do Estado que promovesse e intensificasse a criminalização, o racismo e a segregação da pobreza, e da própria juventude negra.

No ano passado, inclusive, a lógica da militarização ganhou novos contornos midiáticos com o lançamento de uma editoria denominada “Guerra do Rio”, em agosto de 2017, no jornal popular Extra, uma das publicações da Infoglobo.

É fato que a mídia tem o poder de impor uma agenda e direcionar a maneira com que os assuntos serão debatidos na sociedade a partir da cobertura que faz sobre determinado tema. Não parece, portanto, coincidência que, no mesmo momento em que esta editoria é lançada, no segundo semestre de 2017, as operações policiais em favelas ganhem o “reforço” das Forças Armadas. Além disso, generalizou-se como prática a realização de operações sigilosas, com o teor protegido com segredo de justiça, do Exército Brasileiro em favelas do Rio.

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O conceito de guerra está muito distante de ser aplicado à realidade brasileira e evocá-lo é sem dúvida um apelo sensacionalista. Mas aqui há uma compactuação oportuna com a lógica de guerra, mas especificamente de “guerra às drogas”, encabeçada pela política de segurança pública aplicada no Rio, cujas características principais são os confrontos e o alto grau de letalidade.

É um equívoco epistemológico, político e ético apostar na lógica da guerra. Por isso, insistir nela é colocar-se como um dos seus senhores, ainda mais quando ignora-se um debate qualificado sobre a descriminalização das drogas. Todos sabemos que as drogas são um problema de saúde pública e não de segurança pública.

A midiatização do Rio é diferenciada das demais cidades do Brasil, basta observar os noticiários. Mas suas favelas são capturadas pelas lentes que focalizam estes espaços como locais privativos da violência, onde vivem exclusivamente os autores de atos criminosos, e invisibilizam as estratégias de sobrevivência dessa população.

Sob essa ótica, viabiliza-se o discurso de medo que, além de criminalizar a pobreza, circula um alvo naqueles que serão abatidos e constarão nos dados frios como baixas de “guerra”. Sendo assim, não foi difícil, para a mídia carioca, utilizar o carnaval como cortina de fumaça para uma suposta explosão dos índices de violência, algo já desmentido pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP).

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Esse é o cenário midiático para a intervenção militar no Rio. Uma ação dessas satisfaz os interesses das elites política, econômica e midiática em falsear uma retomada do controle social. Em um ano eleitoral, a busca pelo extermínio de um suposto inimigo público transformará em herói aquele que matar o fruto do medo: o outro. E esse outro nesse contexto ganha a forma de quem vive na favela. Jovens negros que já figuram como as principais vítimas de homicídios no Brasil, país que acaba de reforçar a institucionalização de uma licença para matar. 

*Renata Souza é doutora em Comunicação e Cultura (UFRJ), co-investigadora da rede internacional de pesquisas E-Voices: Redressing Marginality e moradora da Maré

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