Midiático

Um olhar crítico sobre mídia, imprensa, internet e cultura pop.

Desclassificação de Wanessa no BBB24 espelha mais um episódio de violência

A tentativa de alguns participantes dentro da casa de ridicularizar ou questionar a validade de sua denúncia não apenas subestima a gravidade do ocorrido, mas também espelha o racismo

Da esquerda para a direita, Davi Brito e Wanessa Camargo. Foto: Reprodução / Globo

Apoie Siga-nos no

Após pouco mais de 50 dias de confinamento no Big Brother Brasil 24, a atmosfera de entretenimento foi ofuscada por uma desclassificação. A saída da cantora Wanessa foi o ponto alto de uma série de atitudes racistas que Davi Brito, seu colega, vem enfrentando ao longo do confinamento. Durante uma noite por excessos, Wanessa, em estado de embriaguez, acabou por atingir o pé de Davi Brito, que dormia, com um golpe que, embora pequeno e sem risco à sua integridade física, foi a faísca para uma reação em cadeia de consequências. Sentindo-se agredido, Davi solicitou a eliminação da cantora do programa, seguindo as regras do jogo – mas sendo ridicularizado por alguns.

Os telespectadores presenciaram, ao vivo e em cores, um exemplo de invalidação sistemática dos sentimentos e da experiência vivida por pessoas negras. É paradoxal que, em um elenco que frequentemente eleva e valida as emoções de seus participantes brancos, Davi seja marcado e culpabilizado. A situação ilustra como, mesmo quando prejudicados, indivíduos negros são frequentemente forçados a assumir o papel de antagonistas em narrativas que deveriam reconhecer e condenar sua vitimização.

A desclassificação de Wanessa lança holofote sobre as práticas e decisões editoriais da Globo na abordagem de conflitos raciais e comportamentais dentro do reality. A narrativa da emissora, ao evidenciar a exigência de Davi pela expulsão da cantora, marca uma descontinuidade com os precedentes estabelecidos em situações similares. A escolha atribui a Davi um papel desproporcional na determinação do desfecho de Wanessa e minimizou a responsabilidade da produção em arbitrar de maneira justa e imparcial.

Foi o participante preto que, ao final, viu-se na posição de pedir a eliminação da participante branca, uma decisão que, em outras circunstâncias, deveria caber à produção, com base em uma análise imparcial das regras do programa. Se os papéis fossem invertidos, a reação da produção e da própria Wanessa poderia ter sido drasticamente diferente.

Em sua passagem pelo BBB, Wanessa não se limitou a competir pela preferência do público e pelo prêmio final; ela também assumiu o papel de crítica, dedicando-se a construir uma narrativa prejudicial e discriminatória contra Davi. Suas opiniões” sobre os motivos pelos quais Davi não merecia ganhar o programa transcenderam a simples estratégia de jogo, enveredando por um território de acusações infundadas e insinuações perigosas que refletem um viés elitista e racista. Essas falas, carregadas de preconceitos e julgamentos infundados, não encontraram o devido repúdio ou mesmo um comentário crítico por parte da produção do programa.

A decisão de Davi de se dirigir ao confessionário reflete sua segurança pessoal e uma posição de enfrentamento contra a normalização de comportamentos abusivos, mesmo em um ambiente altamente competitivo como o BBB 24. Essa atitude não deve ser encarada como um ato de maldade ou um pecado, mas reveladora de uma consciência aguçada sobre seus direitos e uma recusa em ser silenciado ou minimizado por sua etnia ou origem regional. A tentativa de alguns participantes dentro da casa de ridicularizar ou questionar a validade de sua denúncia não apenas subestima a gravidade do ocorrido, mas também espelha um racismo estrutural que insidiosamente sugere que Davi, como homem negro e nordestino, deveria ser “grato” e passivo diante de adversidades e violências.


Esse duplo padrão torna-se ainda mais evidente ao compararmos o tratamento recebido por Davi com o de outros participantes, como Fernanda, cuja postura assertiva e estratégica no jogo lhe rendeu uma reputação de “loba”, alcunha que evoca astúcia sem conotações negativas. Em contraste, as mesmas qualidades em Davi são negativizadas com termos como “manipulador”, “falso” e “egoísta”, revelando um viés racial subjacente que limita a liberdade de Davi de navegar pelo jogo com a mesma liberdade e reconhecimento que os brancos. Em um momento histórico em que a luta contra o racismo e a desigualdade nunca foi tão urgente, esse episódio serve como um alerta sombrio de que as mentalidades elitistas e racistas ainda encontram espaço para se manifestar, mesmo em plataformas amplamente visualizadas como o BBB.

Leia também

Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.

Já é assinante? Faça login
ASSINE CARTACAPITAL Seja assinante! Aproveite conteúdos exclusivos e tenha acesso total ao site.
Os comentários não representam a opinião da revista. A responsabilidade é do autor da mensagem.

0 comentário

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.