Midiático

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Inquérito policial não absolve a Choquei de sua falta de ética no Caso Jéssica

Ainda que Jéssica tenha falsificado conversas, a culpa do que aconteceu não é dela. A narrativa de 'reviravolta' apenas desvia a atenção do cerne da questão – os perigos de amplificar conteúdo na internet sem a devida verificação

Foto: Reprodução/ X

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Em dezembro de 2023, o trágico desfecho da história da jovem Jéssica Vitória Canedo, de 22 anos, que tirou a própria vida após um intensos ataques online, jogou luz sobre a conduta questionável das páginas de fofoca na internet, neste caso, em especial, o mais popular deles: a Choquei.

Nesta quarta-feira 6, a Polícia Civil concluiu a investigação do caso. O desfecho apontou a própria jovem como ponto inicial da narrativa fictícia envolvendo supostos prints de conversas com o humorista Whindersson Nunes. A conclusão da investigação não imputa responsabilidade criminal à Choquei, mas de forma alguma livra a plataforma de sua dívida moral e ética no episódio. A falha em exercer o devido rigor na apuração dos fatos apresentados e sua inação em prestar assistência a Jéssica a colocam em posição de complacência com os ataques virtuais enfrentados pela jovem.

A revelação de que Jéssica forjou prints, em um contexto de profunda vulnerabilidade emocional, não deve ser distorcida em uma narrativa de “reviravolta”. Tampouco deve transformar a vítima em vilã pós-morte. Esse enfoque não apenas desvia a atenção do cerne da questão – a prática perigosa e desumanizante de amplificar conteúdo na internet sem a devida verificação e sensibilidade –, mas também contribui para uma segunda violência contra a memória de Jéssica. É preciso que haja cautela por parte das mídias com a forma como a conclusão do inquérito é divulgada. 

O uso de uma “reviravolta” inexistente permite a instrumentalização de conclusões investigativas para absolver os perfis de fofoca, enquanto vilipendia quem já não pode se defender. Ainda que Jéssica tenha falsificado conversas, a culpa do que aconteceu não é dela. Todos os dias, centenas ou milhares de pessoas enviam conteúdo falso, duvidoso ou impreciso para as redações dos jornais e portais na internet. 

Ancorada em uma cultura de voyeurismo e desumanização, a Choquei capitaliza sobre a espetacularização da miséria humana, adotando uma abordagem ao estilo “deixa queimar” que transforma a dor e o sofrimento alheios em moeda de troca para engajamento e o lucro. 

Seu histórico é marcado por casos controversos, como a exposição de pessoas em situações humilhantes e a publicação de histórias sem checagem rigorosa. Em 2022, por exemplo, a Choquei impulsionou rumores sobre a falsa descoberta de uma cidade perdida na Amazônia, chamada Ratanabá, transformando em tema de debate uma história sem pé nem cabeça que estava restrita aos porões virtuais da extrema-direita bolsonarista.


O Brasil está diante do desafio de avançar na regulação das redes sociais. A implementação de políticas eficazes, acompanhadas de mecanismos de fiscalização e punição adequados, é importante para prevenir o ódio e garantir que a internet seja um terreno de expressão responsável, inclusivo e livre desinformação e violência.

Ao se furtar de exercer a devida diligência, a Choquei falha em sua responsabilidade como veículo que se pretende jornalístico e que alcança milhões de pessoas nas redes sociais. As repercussões desta omissão transcendem a esfera digital, infiltrando-se na realidade concreta com consequências devastadoras, como foi a perda da vida de Jéssica.

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