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São Paulo: 460 anos e nada a comemorar

Ação desastrosa da Cracolândia é o terceiro atentado a uma medida promissora desta Prefeitura. A quem interessa manter a cidade como está?

Policiais do Denarc jogam bombas em usuários de crack; a imagem é de uma das câmeras de monitoramento da Prefeitura
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A desastrosa ação da polícia civil na Cracolândia, ameaçando o trabalho de meses de agentes municipais de saúde e de assistência social, foi apenas o mais recente capítulo dos atentados às ações da Prefeitura com potencial de mudar a cara de São Paulo. Os anteriores foram o veto ao novo IPTU em uma ação coordenada entre PMDB, PSDB e Joaquim Barbosa, e a ampla campanha contra os novos corredores de ônibus.

No caso da Cracolândia, o Denarc, sabe-se lá a mando de quem, armou uma operação mal explicada em meio a centenas de usuários de crack. Iniciou-se um tumulto e os policiais reagiram da forma habitual: com balas de borracha, prisões, e bombas de efeito moral e de gás lacrimogênio.

A repressão levada a cabo nesta quinta-feira pelo governo estadual, a dois dias do aniversário de 460 anos de São Paulo, vai ao encontro ao desejo da parcela conservadora da sociedade que, diariamente, seja na bancada do SBT, nas páginas da Veja ou na padaria da esquina, pede mais porrada nesses “drogados vagabundos”. É a turma que acredita na violência de estado como filosofia de vida, uma panaceia que tudo cura, de “rolezinhos” à falta de moradia.

A pancadaria da polícia ameaça inviabilizar a operação Braços Abertos. Como o próprio nome já sinaliza, a base do programa é a confiança, a intervenção pacífica e o amparo a quem não tem mais discernimento ou forças para nada. Como convencer um viciado em crack de que Prefeitura é uma coisa e Estado é outra, e de que a truculência policial foi um “imprevisto”, um “fato isolado”?

IPTU: nem Marta sofreu tanto

Quando Marta Suplicy resolveu implementar o IPTU progressivo, a gritaria foi grande. O princípio era simples: quem tem mais, paga mais imposto; quem tem menos, paga menos. E quem não tem quase nada, não paga nada. Centenas de milhares de residências do lado de lá da ponte ficaram isentas. Outras tantas passaram a pagar menos impostos. Em contrapartida, todos os bairros nobres tiveram aumento de imposto. O fim da história você conhece: a reforma do IPTU ajudou a consolidar o apelido “Martaxa” e a prefeita não se reelegeu, perdendo para José Serra a eleição de 2004.

Mas no governo Marta, apesar das críticas, o IPTU progressivo aprovado pelos vereadores e sancionado pela prefeita foi implementado. Haddad não teve a mesma sorte. Seu pacote de alterações no Imposto Predial e Territorial Urbano foi igualmente aprovado pela maioria da Câmara, mas acabou barrado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.

Vamos entender a proposta vetada: metade dos 25 distritos mais pobres da cidade (são 96 ao todo) teriam redução de imposto. Seriam beneficiadas, entre outras, as populações de Parelheiros, Cidade Dutra, Lajeado, Campo Limpo, Itaquera, São Miguel e Ponte Rasa. O teto do reajuste ficaria entre 19% e 20% e atingiria bairros como Alto de Pinheiros, Jardim Paulista, Vila Mariana, Moema, Itaim Bibi, Pinheiros, Perdizes, Campo Belo e Morumbi.

Como o prefeito afirmou em entrevistas, em meio a campanha contra a mudança até o dono de um grande grupo de comunicação, proprietário de centenas de imóveis na cidade, o ameaçou.

Não deu outra. O tiro de misericórdia foi dado por Paulo Skaf, presidente da Federação das Indústrias de São Paulo e candidato ao governo paulista pelo PMDB. Skaff entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e o PSDB entrou com outra, de conteúdo semelhante. A poucos dias do Natal, Barbosa acatou a Adin da Fiesp e a proposta aprovada pelos vereadores e sancionada por Haddad foi para o lixo. A Prefeitura se viu obrigada a aplicar o mesmo reajuste (5,6% da inflação) para toda a cidade, inclusive para os distritos que teriam redução de imposto.

Aqueles que aqui vivem perderam mais de R$ 4 bilhões em investimentos –entre o que não foi arrecadado e contrapartidas do governo federal que viriam com o dinheiro extra. É bom repetir: a tese de Skaf e do PSDB aceita por Barbosa preservou os ricos da cidade e tirou de São Paulo R$ 4 bilhões em investimentos.

Ônibus só em Londres

Campanha difamatória semelhante atinge os corredores de ônibus. Grandes veículos de comunicação aliaram-se aos motoristas abonados da capital para atacar a iniciativa. A Prefeitura, ao implementar as novas faixas e corredores exclusivos para o transporte coletivo, estaria atentando contra o direito de ir e vir, e privilegiando uma parcela da população em detrimento de outros “pagadores de impostos”.

Escolha qualquer urbanista do mundo e pergunte o que ele acha de tais argumentos. Parece inacreditável haver um movimento contra o privilégio ao transporte coletivo, conceito que é a base de sistemas de transporte tão festejados pelos paulistanos de férias como os de Londres, Nova York ou Paris. Na metrópole bandeirante, a pressão é por mais espaço aos automóveis.

Coroando os esforços dessa turma, na primeira semana deste ano o Tribunal de Contas do Município suspendeu a licitação para a construção de 150 quilômetros de novos corredores e faixas exclusivas de ônibus, medida que a Prefeitura tentar reverter.

A quem interessa isso tudo?

Vejamos a raiz da palavra Conservador, que aparece mais de uma vez neste texto. Informa o dicionário Houaiss que conservador é aquele que “preserva de alteração”; é aquele que “defende ideias, valores e costumes ultrapassados e/ou que é contrário a qualquer alteração da situação que se atravessa, do que é tradicional ou da ordem estabelecida.”

A quem interessa barrar uma ação de justiça tributária, prejudicar o transporte coletivo ou melar o atendimento humanitário a dependentes químicos da mais terrível das drogas? A quem interessa um conservadorismo assim tão radical? A quem interessa manter a cidade “preservada de alteração”? A quem interessa conservar essa “ordem estabelecida”? Em seu aniversário de 460 anos, São Paulo não tem o que comemorar.

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