Psicodelicamente

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Terapia revolucionária ou perigo indevido? Os mitos e verdades sobre a cetamina

As pesquisas indicam potentes efeitos antidepressivos, mas não há contexto de uso seguro fora dos consultórios

(Foto: Cícero Oliveira/UFRN)
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O debate sobre drogas é uma batalha campal de ideia. No meio desse fogo cruzado, as vítimas muitas vezes são os fatos. Em um dos tiroteios mais recentes, sobrou para a cetamina, ou ketamina, um anestésico dissociativo que tem efeitos psicodélicos e apresenta resultados importantes no tratamento de pacientes com quadros graves de depressão e ideação suicida. Após ser envolvida em um caso rumoroso que resultou em morte, a substância foi alvejada por uma saraivada de matérias superficiais, sensacionalistas, equivocadas e preconceituosas, que refletem a desinformação sobre o tema no Brasil.

O caso envolvendo a empresária Djidja Cardoso, dona de uma rede de salões de beleza em Manaus, encontrada morta aos 32 anos, no final do último mês de maio, supostamente por overdose de cetamina, pode e deve suscitar discussões sobre o uso abusivo dessa e de outras substâncias. Considerando ser este um tema de interesse público – afinal, para o bem ou para o mal, envolve a saúde humana – seria prudente que os principais meios de informação buscassem ir além de destacar os perigos da droga ou de apenas citá-la como um anestésico de uso animal.

A importância do cuidado com as informações veiculadas sobre a droga em questão ganha ainda mais relevância por causa da enorme repercussão da morte da empresária manauara, que teria criado uma seita onde se realizava um ritual bizarro com a substância. Djidja Cardoso ficou conhecida como a personagem sinhazinha do Boi Garantido no Festival de Parintins, uma festa tradicional que acontece na ilha localizada às margens do rio Amazonas, a 420 quilômetros de Manaus, e que este ano ocorre entre os dias 28 e 30 de junho.

Com o objetivo de trazer informações mais qualificadas para o debate, o blog conversou com diversos especialistas que pesquisam a cetamina. Todos concordam que a droga tem efeitos antidepressivos potentes, mas alertam que não há nenhum contexto seguro fora do ambiente médico que possa justificar sua utilização, seja em baladas ou, muito menos, para um absurdo ‘uso ritualístico’, como ocorreu no caso da empresária.

Estudos demonstraram redução da ideação suicida

Desenvolvida como uma droga anestésica e analgésica, a cetamina foi testada pela primeira vez em humanos na década de 1960. Começou a ser comercializada em 1970 e, devido ao uso recreativo, foi classificada em 1999 na lista 3 de substâncias controladas dos Estados Unidos. Essa categoria indica risco moderado ou baixo de dependência.

Estudos realizados a partir dos anos 2000 demonstraram evidências dos efeitos antidepressivos da cetamina administrada em doses mais baixas que as anestésicas, diz o psiquiatra Rodrigo Delfino, coordenador da clínica de cetamina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que trabalha há sete anos com a substância. Segundo o médico, por lá, o fluxo de atendimentos é de aproximadamente 100 pacientes por ano e cerca de 300 já completaram o tratamento.

Em 2019, a FDA (Food and Drug Administration, equivalente à Anvisa nos Estados Unidos) aprovou a utilização de uma das formas da droga para depressão grave: a escetamina intranasal. A medicação Spravato foi desenvolvida pela farmacêutica Janssen e teve seu uso médico aprovado também no Brasil em novembro de 2020 pela Anvisa.

A forma intravenosa para depressão é fora da bula, mas é muito comum o uso off-label de medicações que têm sua segurança padronizada pela Anvisa.

“Pesquisas apontaram que a cetamina tem um efeito potente no tratamento de depressão bipolar e unipolar”, conta Delfino, que também é responsável pelos atendimentos na Beneva, primeira clínica especializada em terapias com psicodélicos do Brasil.

Na clínica, localizada na Vila Mariana, na zona sul da cidade, de agosto de 2023 até maio deste ano, foram atendidos aproximadamente 70 pacientes e realizadas cerca de 500 infusões de cetamina.

Estudos com cetamina demonstraram também um grande efeito na redução da ideação suicida e dos sintomas de anedonia (a falta de prazer pela vida), traços característicos em quadros graves de depressão. “Pessoas que chegam num pronto-socorro com risco altíssimo de suicídio são geralmente atendidas com medicações que demoram de três a quatro semanas para fazer efeito; a cetamina age em duas horas”, compara Dartiu Xavier, psiquiatra da Unifesp e consultor científico da clínica Beneva.

O médico explica que o uso de cetamina já é um protocolo de atendimento de emergência para casos de ideação suicida no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países. “Claro que você não encontra isso em todos os lugares, mas em São Paulo, por exemplo, dois ou três hospitais atendem através do SUS (Sistema Único de Saúde), incluindo a Unifesp”.

É um tratamento seguro?

Na Unifesp, o tratamento completo de cetamina envolve cerca de oito aplicações. Segundo o médico Rodrigo Delfino, são duas doses por semana no primeiro mês, uma vez por semana nos meses subsequentes, com redução progressiva até completar mais ou menos seis meses.

“A cetamina é muito segura quando usada dentro de um contexto médico, mas não se deve usar fora de um ambiente clínico, da mesma forma que outros medicamentos anestésicos, como o propofol, por exemplo”, explica Delfino.

Isso ocorre porque o efeito anestésico, embora não represente risco à saúde da pessoa, pode deixá-la extremamente vulnerável. Foi o que aconteceu em outro caso famoso envolvendo o americano Matthew Perry, ator de Friends, que morreu em outubro de 2023 devido aos efeitos agudos da cetamina.

O corpo do ator foi encontrado na banheira de hidromassagem de sua casa. O exame toxicológico confirmou que o nível de cetamina em seu organismo (3540 ng/ml) era suficiente para tê-lo deixado inconsciente. “Obviamente, ele apagou”, comenta Delfino.

Qualquer anestésico usado por conta própria apresenta um risco potencial, adverte o médico. “O Michael Jackson morreu por causa do uso de propofol, mas isso não significa que a droga deixou de ser usada. O que surpreende neste caso [da Djidja Cardoso] é a bizarrice da situação, acho que é a primeira vez no mundo que se ouve falar de um ritual com cetamina.”

Quem deve buscar o tratamento com cetamina? 

De acordo com especialistas, a indicação deve partir de uma avaliação de riscos e benefícios realizada pelo médico no momento do atendimento. A indicação da bula, na forma intranasal, que é a padronizada, é para depressão resistente ao tratamento e com ideação suicida. Ou seja, para alguém em tratamento de depressão que tenha tomado pelo menos dois antidepressivos sem uma resposta satisfatória.

Mas o psiquiatra Dartiu Xavier relata que o trabalho com cetamina na Unifesp mostrou que mesmo em casos de pacientes que respondem a algum tipo de antidepressivo clássico, o uso da cetamina pode acelerar o processo terapêutico. 

Dependendo da gravidade do caso, não estamos mais tão rígidos quanto ao uso da medicação apenas quando não há resposta a outros tratamentos. Pessoas com hipertensão ou alguma doença cardiológica descontrolada não devem ser tratadas com cetamina, pois representa um risco de saúde importante.

Causa dependência?

“A cetamina pode causar dependência, mas seu potencial não é tão alto quanto o de outras substâncias. No entanto, quando ocorre, pode ser muito grave. Por isso, é crucial usar com cautela”, explica o médico Rodrigo Delfino. Em qualquer indicação, as doses devem ser baixas e administradas em contextos altamente controlados. O vício é mais comum no uso recreativo.

“Com doses adequadas e supervisão médica, o uso é seguro”, acrescenta o psiquiatra Rodrigo Piloto, pesquisador da Unifesp e membro do corpo clínico da Beneva.

Ele ressalta que outros medicamentos antidepressivos também podem causar dependência, com riscos até maiores do que os da cetamina. “Acho que todos já ouviram falar do Rivotril, um medicamento amplamente usado para ansiedade. Até hoje, muitas pessoas são dependentes dessa droga devido ao uso inadequado.”

Mecanismo antidepressivo

A cetamina é um anestésico dissociativo que pode ter uma função psicodélica, mas difere dos alucinógenos clássicos, como psilocibina, ibogaína, ayahuasca, mescalina e LSD.

O efeito anestésico dissociativo produz uma desconexão do corpo. Nas dosagens menores usadas na psiquiatria ela possui um efeito dissociativo, mas não anestésico. O paciente pode sentir-se levemente desconectado do corpo ou dos pensamentos.

O mecanismo pelo qual a cetamina atua como antidepressivo é complexo. Delfino explica que a substância funciona como um antagonista dos receptores glutamatérgicos do tipo NMDA no cérebro, o que aumenta a transmissão de glutamato e induz a neuroplasticidade. Isso significa que a droga restaura os neurônios que foram atrofiados pelo processo depressivo crônico.

“O ponto de semelhança com os psicodélicos clássicos é a neuroplasticidade, que envolve essa restauração neuronal. No entanto, as áreas de ação são diferentes; os psicodélicos clássicos geralmente atuam nos receptores serotoninérgicos”, explica o médico.

Cetamina pelo SUS

Tratamentos com psicodélicos através do SUS já são uma realidade também em Natal (RN). Há vários anos, o Hospital Onofre Lopes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) realiza, inicialmente de forma pontual, a aplicação de cetamina subcutânea para pacientes com depressão resistente ao tratamento.

“A partir de 2021, após a pandemia, e com a autorização da FDA nos EUA e da Anvisa no Brasil para a formulação intranasal do Spravato, começamos a nos atentar para a questão do preço que foi colocado na medicação a partir da patente da Janssen”, conta a fisiologista Nicole Galvão, pesquisadora do Instituto do Cérebro, vinculado à universidade.

Foi então que o grupo, liderado pelo neurocientista Dráulio de Araújo, decidiu organizar esse atendimento no Hospital Onofre Lopes de forma off-label e iniciar uma pesquisa para ajudar na validação de dados da aplicação subcutânea, visando amenizar o preço associado ao tratamento intranasal, pois, segundo a pesquisadora, trata-se exatamente da mesma substância.

Uma ampola de Spravato custa atualmente 500 dólares nos Estados Unidos, o que equivale a cerca de 2.700 reais no Brasil. “E o protocolo intranasal exige duas aplicações por semana, sendo que um paciente utiliza de duas a três ampolas por aplicação, ou seja, são necessárias de quatro a seis ampolas por semana”, observa Galvão.

“Um frasco grande de cetamina, que é utilizado para várias aplicações, custa 15 reais, o uso é diferente, na forma subcutânea, mas possui a mesma molécula do Spravato”, ressalta a pesquisadora.

Ampliar o acesso aos tratamentos psicodélicos é um dos objetivos centrais dos pesquisadores da UFRN. Recentemente, o grupo lançou o Camp, Centro Avançado de Medicina Psicodélica, uma plataforma na internet que visa difundir informação de qualidade, oferecer cursos sobre o tema, treinamentos para terapias e possibilitar atendimentos clínicos através do SUS.

Os pesquisadores da UFRN também acabaram de divulgar os resultados de um ensaio clínico em um artigo na revista científica Journal of Psychiatric Research. A pesquisa, realizada com 18 pacientes depressivos resistentes ao tratamento, testou a escetamina subcutânea durante oito sessões semanais para tendências suicidas.

“Houve uma redução imediata na tendência suicida, ocorrida 24 horas após a dose inicial, que persistiu por sete dias durante o período de administração, e observamos níveis mais baixos de ideação suicida durante um acompanhamento de seis meses”, detalha Galvão.

‘Uso de substâncias que alteram a mente é inerente à condição humana’

O uso de substâncias que alteram a mente é inerente à condição humana, opina o psiquiatra Rodrigo Leite, pós-graduando da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Para ele, a mídia precisa compreender que as drogas não são todas iguais. “Álcool, tabaco, cocaína, crack são substâncias distintas dos psicodélicos, como psilocibina, cetamina ou LSD.”

O médico critica o tom sensacionalista e maniqueísta com matizes morais que frequentemente turva o debate público sobre o tema. Ele ressalta que, curiosamente, o álcool, apesar de ser a droga mais associada a adoecimento, incapacidade, acidentes, homicídios e suicídios em todo o mundo, não recebe a mesma atenção nas manchetes.

O psiquiatra defende que a sociedade precisa ser informada tanto sobre os riscos do abuso recreacional de psicodélicos quanto sobre seu uso clínico em ambientes controlados, como é o caso da cetamina. “É fundamental lidar com o tema com menos pânico moral ou condenação, pois isso pode até mesmo atrapalhar as pessoas na busca por tratamento”, conclui Leite.

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