Vanguardas do Conhecimento

Capital que mais falta ao Brasil é o moral

Mais do que o “capital riqueza”, falta ao Brasil o capital moral.
E a vinculação entre capital humano e moral é tanta que podem ser considerados dois lados de uma mesma moeda.

Se a intelectualidade aumenta e a moralidade continua estagnada, a educação é falha. Essa é a regra no Brasil
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“Capital” é um termo econômico essencial que, como tudo, veio evoluindo ao longo do tempo. Os autores clássicos, em geral, entendiam capital como um dos fatores de produção (terra, capital e trabalho), ainda que lhe atribuindo diferentes definições.

Apesar da ideia ter aparecido rudimentarmente nas obras de Adam Smith e Karl Marx, foi na brilhante obra Princípios de Economia, publicada pela primeira vez em 1890, que Alfred Marshall acrescentou a “organização” como um fator de produção, lembrando também da grande importância do conhecimento como uma espécie de capital que viria a ser chamado, após a metade do século XX, de “capital humano”.   

Hoje já se fala com mais frequência em capital como uma gama de capacidades (patrimonial, financeira, humana, moral…) que pode ser investida na produção para criar riqueza, como o faz o especialista no tema Xiaoxi Wang.

Um tipo de capital praticamente esquecido, porém fundamental para o desenvolvimento, é o moral, intimamente ligado ao que se denomina de capital humano. Enquanto este é o nível de conhecimento e de capacidades/habilidades produtivas dos trabalhadores, consubstanciado em seu nível de saúde e educação, aquele representa o nível ético deles, que está relacionado, por exemplo, com sua capacidade de cooperação e de cumprimento de normas.  

A vinculação entre capital humano e moral é tanta que podem ser considerados dois lados de uma mesma moeda. Em regra, a longo prazo, mais intelectualidade leva a mais moralidade, e vice-versa. Esses indivíduos que estampam hoje os jornais, os quais parecem muito inteligentes e imorais, são, em sua maioria, apenas “espertos”, treinados para corromper e tramar fora da lei, não sendo dotados de profunda intelectualidade, o que faria os seus atos lhes incomodarem mais sob o ângulo moral. 

O nível de capital moral aumenta na medida em que se dá uma educação de maior qualidade, que precisa ter em seu cerne um grande peso moral, como propunham os gênios Johann Heinrich Pestalozzi e seu discípulo Hippolyte Léon Denizard Rivail, enquanto que o nível de capital humano (intelectualidade) tende a aumentar com um maior senso moral (em sentido amplo): de dever de contribuição para a sociedade; de importância da autonomia e do esforço; do gozo a partir do mérito de cada um ao mesmo tempo em que se coopera ao máximo; etc.  

Se a intelectualidade aumenta e a moralidade continua estagnada, isso quer dizer que a educação é completamente falha. Essa é a regra no Brasil, salvo os casos de raras vanguardas, algumas delas já discutidas neste blog

Num sistema produtivo fordista, de massa, a importância da moral já era grande, porém menor, pois não se exigia muito conhecimento ou interação dos trabalhadores e o foco era que eles obedecessem as ordens, sendo capazes de realizar tarefas mínimas repetitivas sem criar problemas para os empregadores, como sempre lembra Roberto Mangabeira Unger.

No sistema produtivo do século XXI, cada vez mais dinâmico e competitivo, que exige inovação constante e intensa busca por maior complexidade, capital humano e moral surgem como um (ou dois) dos fatores de produção mais importantes.

A importância do capital moral não tem a ver apenas com o trabalho no setor privado, mas, também e principalmente, no setor público, onde se tem mais poder para modelar as instituições e o poder legal para criar as políticas públicas. Ninguém parece negar hoje que um dos maiores problemas do Brasil é a imensa corrupção, mas, em regra, não se sabe ainda mais do que uma ínfima parte dela.

Aquilo que é imoral normalmente acontece às escuras. Não se faz ideia, por exemplo, da sonegação fiscal no Brasil, pois não se sabe quanto é pago diretamente no exterior em paraísos fiscais ou de quanto é para lá evadido por meio, por exemplo, de doleiros, veículos corriqueiramente usados por brasileiros, conforme as operações policiais têm exposto.

Se as instituições e políticas são fundamentais para o desenvolvimento econômico, uma vez que o capital moral do setor público seja baixo, o país terá grandes chances de fracasso. Se, somado a esse problema do setor público, houver um déficit de capacidades e de ética no setor privado, resultando em conluios público-privados frequentes, o fracasso da nação é praticamente certo. Vide o Brasil.

Deve-se pensar, como dito, em moral num sentido amplo, que é o seu conceito mais importante, e não apenas no de cometer ou não ilícitos. A moral envolve o indivíduo compreender sua importância dentro da sociedade como um ser social, um elemento interconectado com o todo e que precisa contribuir para ele, levando a mais respeito das normas em geral e a uma busca constante de progresso intelectual e moral, sabedor o sujeito de que o meio para crescer não deve ser se valendo de ilegalidades ou imoralidades.

A moral envolve, portanto, esforço, ao contrário de preguiça e de aproveitamento dos outros, culminando em crescimento de produtividade e melhor funcionamento das instituições.

As instituições são os padrões de conduta, e as regras com seus sistemas de imposição, que levam à organização social e, portanto, econômica. Quanto menor a moral de uma sociedade, menos respeito às instituições e mais corrompidas elas próprias serão.

Quanto menor a moral, mais desorganizada é a sociedade e, assim, menos desenvolvida. Alguns vão citar exemplos de países com menos moralidade, mas que se desenvolveram muito nos últimos anos, como a China, porém esse dado, quando tomado isoladamente, é uma ilusão para efeitos de definir a relevância do capital moral.

Toda análise depende de como são formados os dados dos quais se parte. Se desenvolvimento for sinônimo apenas de aumento de PIB, a análise já começará errada. Se moralidade for sinônimo apenas de indexes de corrupção, também haverá erro.

Os indexes de corrupção envolvem, em regra, apenas parte daquela que consegue ser percebida. Voltamos ao exemplo da sonegação fiscal. Não é possível medir imoralidade que não se conhece. Países imorais também costumam ter pouca transparência e isso gera um processo circular: quanto mais imoral, menos transparente; quanto menos transparente, mais fácil esconder a imoralidade, que tende a aumentar.

Mesmo dentro da corrupção percebida, depende do que se defina por corrupção. Em regra, os indexes que medem esse conceito não apreendem a capacidade de cooperação das pessoas físicas e jurídicas, não percebendo quanto umas bloqueiam a produtividade das outras, quanto retrabalho é gerado, quão pouca concorrência existe por deslealdade chancelada pelo setor público etc.

Se olharmos para os primeiros lugares desses indexes, por outro lado, veremos países como os nórdicos, Nova Zelândia e Austrália, que estão sempre nos primeiros lugares de melhores instituições e políticas públicas. Há, portanto, uma grande correlação entre a qualidade do que o setor público (ex. instituições e políticas) e o privado (ex. economia) criam e o capital humano e moral.

A grande questão que fica é: onde começar, se está tudo interligado? Em todos os lados. A eleição de uma única solução para problemas complexos, gerados por inúmeros focos distintos, é um dos maiores erros dos humanos até então. Como já tratamos do desenvolvimento econômico, de boas instituições e políticas públicas em textos anteriores, foquemos no capital moral agora.

É preciso melhorar a educação com foco na elevação da moral, cuidando de capital humano e moral ao mesmo tempo. Para isso, é preciso discutir moral na escola e em casa desde muito cedo. O Estado, em comunhão com os especialistas, deveria criar metodologias de desenvolvimento moral para aplicação por professores na escola e pelos pais em casa, cuidando, portanto, da educação em seus dois âmbitos.

A educação precisa levar ao autoconhecimento, à descoberta das habilidades inatas do indivíduo e estimulá-lo a desenvolvê-las, assim como outras para as quais tenha aptidão. Como dito em textos anteriores, apenas se conhecendo bem, o sujeito poderá investir naquilo para o que tem talento e do que gosta, o que elevará em muito a sua produtividade e capacidade de inovação.

Nesse sentido, é preciso, sim, admitir que a educação carece de passar por atividades que muitos acham ainda, ignorantemente, piegas e inócuas, como discussões de filosofia moral e meditação.

Apenas com uma educação que foque na elevação do capital humano e moral, e não apenas em passar nos testes e atingir notas boas em índices pobres como o Ideb, o Brasil poderá se reconstruir de forma profunda. Até lá, buscará se segurar sob os escombros deixados pela sociedade atual. 

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