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Chile caminha para ter uma boa previdência

A previdência do Chile é discutida aqui de forma distorcida. Ainda que lentamente, o nosso quase vizinho vem progredindo

Bachelet: seria positivo se o governo aprovasse mudanças antes das eleições
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O Chile é um país que tem, em regra, boas políticas públicas e boa administração, como lembrou um dos maiores especialistas em previdência do mundo em entrevista concedida a este autor para a CartaCapital.

O Chile consegue reunir pessoas com boa capacitação e seriedade para criar e administrar as políticas, porém também vem aprendendo com os países mais desenvolvidos, que, como é natural, têm as políticas públicas mais avançadas. Não se defende aqui subserviência ou acordos desfavorecidos com países desenvolvidos, mas aproximação para aprender com quem tem mais experiência, algo elementar na vida animal.

Enquanto o Brasil continua afastado da OCDE, participando mediante convite de algumas poucas ações, o Chile passou em 2010 a ser o único país sul-americano membro efetivo desse órgão internacional de estudos, discussões e propostas de políticas públicas avançadas, por decisão da então, e agora novamente, presidente Michelle Bachelet

Há muito tempo, vê-se no Brasil uma confusa e curiosa discussão sobre o Chile, como se fosse um país completamente neoliberal, de direita, de modo que toda informação boa sobre ele, desde um crescimento no PIB, é usada por neoliberais e direitistas em geral como prova do sucesso de suas ideias, ao passo em que toda informação ruim é usada por esquerdistas como prova do insucesso dos seus opositores.

Ocorre que, depois das políticas neoliberais de Pinochet em seus governos, que foram de 1973 a 1990, governaram, de 1990 a 2000, dois presidentes do Partido Democrata Cristão, que se coloca ao centro no espectro político. De 2000 a 2006, governou o socialista Ricardo Lagos, que teve recordes históricos de aprovação.

De 2006 a 2010, governou Bachelet, de centro-esquerda, dando lugar ao centro-direitista Sebatián Piñera, de 2010 a 2014, retornando a própria Bachelet de 2014 até agora.

Pode-se afirmar, portanto, com inteira tranquilidade, que, após dez anos de governo de centro no Chile até o ano 2000, neste século XXI, ao longo de 17 anos, a esquerda governou por 13 deles, realizando diversas alterações nas suas políticas, o que remete à conclusão de que muitos brasileiros, inclusive especialistas famosos, precisam pesquisar melhor antes de discutirem política, economia e outros assuntos, e não é diferente com a Previdência, como se demonstrará.

Influenciado por Milton Friedman, José Piñera, conhecido como um “Chicago Boy” por conta da influência que sofria da Escola de Chicago, foi o economista responsável pela reforma da previdência do Chile realizada em 1980, durante o governo de Pinochet.

Partiu-se de um mal desenhado sistema de repartição, com o qual o sistema brasileiro vigente ainda em 2017 mantém semelhanças, para um sistema de capitalização de financiamento obrigatório por aqueles do setor formal, com previsão de um pagamento mínimo de aposentadoria para trabalhadores com pelo menos 20 anos de contribuição. Em suma, mudou-se o tipo do sistema chileno, porém o design mal feito continuou.

Quando o Chile fez essa reforma, estava em franco crescimento uma onda de políticas neoliberais num movimento capitaneado pelos Estados Unidos, que desaguou no Consenso de Washington.

À época, as autoridades chilenas se gabavam do seu novo sistema de previdência, tratando-o como o maior acerto do planeta, e essa ideia foi reforçada por especialistas, inclusive pelo Banco Mundial no começo, tendo levado outros países de América Latina, América Central e Leste Europeu a seguirem o mesmo caminho.

Com reformas semelhantes, natural que os problemas enfrentados em cada país fossem parecidos. Ao sair de um sistema de repartição para um de capitalização, há imensos custos fiscais de transição para o país, a menos que a mudança seja lenta e bem feita, ou que ela não seja total, mantendo-se o sistema de repartição em comunhão com o de capitalização.

Na transição, o Estado termina sendo obrigado a custear imensos valores relativos aos benefícios daqueles que estão se aposentando, pois os trabalhadores irão começar a contribuir para um fundo de capitalização, que apenas será liberado quando eles próprios se aposentarem. 

Nos países que fazem a transição para um sistema híbrido – também chamado de sistema de 3 pilares (three-pillar system) desde um relatório do Banco Mundial de 1994, pois incluídas nessa ideia as contribuições voluntárias –, o Estado pode gastar menos e os trabalhadores mais, porquanto há o que se chama de “dupla carga” (double burden) pelo fato de ser preciso contribuir para os dois sistemas (repartição e capitalização) ao mesmo tempo.

É possível, no entanto, concentrar esse gasto maior dos trabalhadores nos que ganham mais, fazendo justiça socioeconômica e evitando que os mais pobres tenham perda de poder de compra, o que reduz a demanda agregada e prejudica as vendas, minando a economia.  

Ciro Gomes defende uma transição do sistema de repartição brasileiro para um de capitalização, mas não explica como seria. Dá a entender que não quer um sistema híbrido, apenas de capitalização com gerenciamento público.

Como visto, essa ideia causaria problemas enormes num país em crise fiscal e desigual como o Brasil, por conta dos custos de transição e pelo fato de o primeiro pilar (repartição) ser muito mais apropriado do que o segundo (capitalização) para atingir os fins da previdência de alívio de pobreza e redistribuição de renda. 

A ideia de fundos públicos no sistema de capitalização também é ruim. Um problema verificado no Chile e em muitos outros países foi o custo de administração dos fundos privados, além da sua pouca competição. As empresas, como naturalmente procuram o lucro, cobram taxas altas, e o dinheiro pago mês a mês chega bem menor à época da aposentadoria, pois as taxas são descontadas das próprias aplicações do trabalhador. Ainda, o risco de se formar um oligopólio é grande, resultando em pouca competição. 

O Chile veio, porém, aperfeiçoando a regulamentação desse setor, que já funciona melhor e a experiência lá pode servir de exemplo. A solução de tornar o gerenciamento público causaria, como é bem comum no Brasil, riscos de interferência política na aplicação dos fundos e riscos de endividamento estatal por confiança no pote da previdência, o que é, nesse caso, ainda mais indesejável do que conter a voracidade do mercado privado, algo possível de se fazer, pois provado por outros países.

A teoria e a prática estrangeiras indicam ser melhor o gerenciamento privado de fundos de capitalização, porém muito bem regulamentados pelo Estado. Praticamente todos os países com sistema de capitalização têm hoje um modelo desse tipo.  

Além de custos de transição e administração, outros problemas verificados no Chile e demais países que migraram para o sistema de capitalização foram: a) a pouca cobertura do sistema de previdência, com enorme informalidade; b) baixos valores de benefícios; e c) aumento de desigualdade sob vários aspectos.

Até então, o leitor deve estar perguntando qual a importância de tratar do Chile se eles fizeram uma porção de bobagens, mas só essa experiência parcialmente mal fadada já oferece vários importantes ensinamentos ao Brasil. O mais relevante é, porém, o que está por vir.

Em 2006, no início do primeiro governo Bachelet, notando os problemas da previdência, ela formou a Marcel Commission, composta por especialistas chilenos, que fez um longo e transparente debate sobre o tema.

Como resultado das reformas propostas, o sistema começou a retornar ao caminho social, criando uma pensão solidária, que independe de contribuição, pois financiada em sua maior parte pela tributação, sendo, em princípio, todos beneficiados, inclusive aqueles do setor informal. É como uma renda mínima para os idosos. O Chile já tinha um programa social semelhante ao Benefício de Prestação Continuada brasileiro, mas o ampliou com uma perspectiva mais previdenciária. 

Apesar de aquela reforma ter resolvido alguns problemas, Bachelet, uma verdadeira progressista, criou uma nova comissão (Bravo Commission) para a reforma da previdência, desta feita composta também por um dos maiores especialistas do mundo no tema, Nicholas Barr, e com assessoria do seu parceiro em estudos e co-autor em livros, o vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2010, Peter Diamond.

A comissão identificou os seguintes problemas: aposentadorias inadequadas devido a uma taxa de reposição muito abaixo da taxa da OCDE; ainda baixa cobertura, pois muitos não contribuem ou contribuem apenas uma parte do tempo ou com parte do valor; apesar da melhora, continuam altas as taxas administrativas; desigualdades entre homens e mulheres; e pouco conhecimento financeiro da população, que leva dentre outras coisas, a uma má compreensão do sistema de capitalização.

Dentre as inúmeras recomendações entregues em 2015 pela comissão, estão o aumento do benefício solidário não contributivo para aqueles com pouca ou nenhuma participação no sistema de capitalização, o aumento do tempo de contribuição e a equalização, com aumento da idade mínima, de homens e mulheres para 65 anos.

Houve uma divergência na comissão sobre fazer apenas esses e outros ajustes no sistema atual ou fazê-los e recriar um sistema de repartição com design avançado, na mesma linha das propostas realizadas acima. Este autor optaria pela segunda posição, mais em linha com sua preferência por um sistema de 5 pilares, como sugere o Banco Mundial desde 2005, que consiste em: (0) um sistema não contributivo, como uma renda mínima paga apenas àqueles fora da previdência, (1) um sistema de repartição, (2) um sistema de capitalização, (3) contribuições privadas voluntárias e (4) uma colcha social complementar, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e outros programas que garantam os direitos fundamentais em caso de incapacidade de trabalhar real ou ficta. 

Apesar dos problemas ainda existentes, o Chile vem caminhando para uma boa previdência. Espera-se que as reformas, com base no relatório da Bravo Commission, sejam logo realizadas, antes que cheguem as eleições presidenciais de novembro, quando o assunto tende a cair na polarização política. 

De qualquer forma, em qualquer análise comparativa de sistemas de previdência, o Chile aparece à frente do Brasil, como no respeitado índice feito pela Mercer, de Melbourne, Austrália, em parceria com o Australian Centre for Financial Studies, no qual o Chile teve 66,4 pontos, num total de 100, em 2016, enquanto que o Brasil teve 55,1. São dois sistemas muito distantes dos melhores, porém o Chile parece estar mais próximo de chegar lá. 

Conhecendo as reformas ao redor do mundo, é possível ter uma noção muito melhor a respeito do que deu ou não certo, das propostas que têm mais ou menos chances de vingar no Brasil, das dificuldades de implantação de mudanças ou de novos sistemas etc. O Banco Mundial tem, por exemplo, alguns dos principais trabalhos do mundo sobre previdência, que sequer são citados no Brasil. 

Como os brasileiros não têm praticamente nenhuma tradição de discussões sobre reforma da previdência, e isso fica claro nos confusos e superficiais debates havidos até então, deveria ser formada uma comissão com brasileiros e super especialistas de outras nacionalidades, a exemplo de Barr e Diamond, aqui citados, para uma análise mais cuidadosa do sistema brasileiro.

O tema é complicado e importante demais para que se deixe o orgulho e o nacionalismo ingênuo prejudicarem toda uma população por conta de uma reforma açodada e muito mal feita.  

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