Cultura

A dificuldade de fazer cinema no Brasil

A experiência de “Lua em Sagitário” e o sonho de chegar ao circuito comercial de cinema com os temas da luta pela terra e contra os estereótipos

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Comecei a trabalhar com audiovisual no início dos anos 1990. Início mesmo, em 1991, ano em que o então presidente Fernando Collor de Mello fechou a Embrafilme. Eu pouco sabia sobre política audiovisual naqueles tempos, mas o que a minha mãe me repetia, um consenso na época, era: “Cinema não é pra você, é uma atividade para poucos, filhos de ricos, filhos de artistas, filhos de gente bem relacionada”.

Não me encaixava em nenhuma dessas categorias. Trabalhei em várias frentes, como assistente em muitas áreas – de produção à montagem e direção. O que me movia era o desejo de poder estar no set, sem imaginar que iria algum dia conseguir realizar um filme como diretora.

Em 1993, em parceria com meu companheiro, Ralf Tambke, recém-saídos da universidade, abrimos a Plural Filmes. O nosso primeiro trabalho foi um curta documentário 16mm para a ZDF, segundo canal público alemão, parte de uma série Os 7 sacramentos de Canudos.

Em 1994, fizemos nosso primeiro curta de ficção, com um roteiro meu, o Livre, com o ator Jackson Antunes e a jovem atriz Ana Cecília Costa. Fizemos no esquema “guerrilha”, com o suporte dos equipamentos do Centro Técnico Audiovisual (CTAV).

Nesse mesmo ano, nascia a minha primeira filha. Em 1996, produzi meu primeiro documentário, Ocupar, resistir, produzir – um recorte do lema do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra pela voz das mulheres do MST.

De lá pra cá, muita coisa mudou. Na vida pessoal, tive mais uma filha, fiz mestrado, passei a dar aulas, mudamos para Florianópolis e tocamos a produtora. Do ponto de vista profissional, a transformação radical foi que, a partir de 2003, passamos a ter um Ministério da Cultura de fato, até então um órgão de fachada, que existia para distribuir recursos entre os mesmos e organizar coquetéis.

A política cultural da equipe de Gilberto Gil, assim como as ações do Ministério do Desenvolvimento Agrário, enfim deslocado do Ministério da Agricultura, foram realmente transformadoras. Pela primeira vez na história brasileira os recursos foram repartidos de forma mais justa. Surgiram editais com critérios transparentes, projetos como Descobrindo os Brasis e Pontos de Cultura.

A produção, muito centrada no eixo Rio/São Paulo/Rio Grande do Sul, multiplicou-se. Estados como Pernambuco e Ceará despontaram no cenário audiovisual com novos talentos. O Brasil, pelo audiovisual, começou a ver os outros Brasis.

Assim, o argumento do Lua em Sagitário surgiu da vontade de abordar no cinema alguns preconceitos junto ao público jovem. A realização de documentários me levou a conhecer profundamente o Brasil. Nos documentários, meu trabalho estava radicalmente relacionado ao universo rural e à cultura de raiz.

O tema da questão agrária foi recorrente: Ocupar, resistir, produzir, registro da voz de mulheres lideranças do MST. O documentário Sem perder a ternura apresenta uma família de assentados do oeste de Santa Catarina, cujo filho mais jovem tirou o primeiro lugar no ENEM no município, tendo estudado a vida inteira em escolas do assentamento.

Conheci um contingente de jovens, do sertão do Nordeste à fronteira do Brasil com a Argentina, que nunca se viu representado no cinema. Jovens que possuem os mesmos sonhos, que curtem as mesmas coisas que jovens de qualquer grande cidade brasileira.

O primeiro tratamento do roteiro do Lua foi escrito no segundo semestre de 2009, com um antigo parceiro de escrita e projetos, o Will Martins. Como a história se passa em uma pequena cidade na fronteira do Brasil com a Argentina e tem um personagem coadjuvante argentino, a coprodução com o país vizinho se fez necessária.

Com a coprodução selada e reconhecida pela Ancine em um processo que demora cerca de 45 dias, submetemos o roteiro ao prêmio Ibermedia, que premia projetos iberomericanos. Ganhamos. O Ibermedia funciona como um pontapé inicial para os projetos contemplados, já que o valor da premiação é muito baixo para a produção de um longa-metragem – U$ 80 mil no câmbio da época, equivalente a R$ 200 mil.

Descobri que ganhar o prêmio Ibermedia, para muitos dos países que participam, é como um selo de qualidade do projeto. No Brasil, porém, não muda muito. O que conta para que um projeto de longa vá para frente é o distribuidor, na realidade, a capacidade comercial do filme, as chances de emplacar uma boa bilheteria depende disso.

Começou, então, a nossa saga em busca de uma distribuidora que se interessasse pelo Lua, para podermos submeter o filme a uma das linhas do Fundo Setorial do Audiovisual. Em São Paulo, escutei de uma distribuidora que “jovem nenhum se interessaria por um filme que não se passa no Rio ou em São Paulo, numa cidade de verdade”.

As distribuidoras em geral entram em filmes com elenco global, de comédia, com “menos riscos” e mais chances de sucesso de vendas. É uma lógica de comércio mesmo, muito difícil de romper. Outros nem sequer responderam aos nossos e-mails e ligações.

Afinal, era um filme de uma documentarista, diretora estreante, elenco desconhecido. Mas, por outro lado, o Instituto do Cinema Argentino aprovou o projeto por lá, disponibilizando o valor correspondente à coprodução (30% do orçamento) para a empresa coprodutora argentina. E nesse estágio, com o valor da coprodução, mais o valor do Ibermedia, ficamos dois longos anos.

Foi com esses recursos que peitamos produzir o filme. Com uma equipe enxuta, 24 técnicos, fora elenco. E com locações em Florianópolis, Dionísio Cerqueira (fronteira com a Argentina), extremo oeste e oeste de Santa Catarina, e na serra catarinense, ousamos rodar o meu primeiro longa.

Não tínhamos verba suficiente para arte, figurino, mas conseguimos muitos apoios para hospedagem e alimentação. E, em paralelo ao início do processo de filmagem, a distribuidora paulista Elo Company acreditou no Lua. Em 2014, cinco anos após o primeiro tratamento do roteiro, ganhamos o Prodecine 4 – FSA/Ancine, com o aporte de R$ 570 mil, o que viabilizou a segunda etapa de filmagem e a finalização.

O tal do mercado para realização de longas ainda é para poucos, especialmente quando se pretende chegar às salas de cinema. Com meus documentários, sentia que conversava com os mesmos grupos, mesmas pessoas já sensibilizadas pelas causas sociais.

Com o Lua, a vontade é de chegar no shopping, de ser vista por muitos jovens que reproduzem o pensamento dos pais, sem questionarem que podem ir além, podem divergir, enxergar em volta e desenvolver um pensamento crítico, livre de preconceitos. Queria ampliar a rede, ver um movimento social como o MST revelado não de forma estereotipada, ou de forma panfletária.

E, nesse sentido, toda a minha experiência de registro de personagens reais do movimento foram muito importantes para construir um personagem como o assentado Murilo, o amor marginal de Ana, a protagonista.

A negociação com o mercado exibidor é dura, as redes de cinema veem o filme como produto de venda e, especialmente por sermos desconhecidos, de uma região sem tradição na realização cinematográfica e sem sucesso comercial, nunca houve uma garantia de estreia. Sempre lidamos com a dúvida.

O que pesa a nosso favor é a cota de tela para o cinema brasileiro e o grande êxito que nosso trailer e nossas promoções nas redes sociais tiveram com os jovens. Até este momento, com mais de um milhão de visualizações e algumas pré-estreias em universidades e assentamentos da reforma agrária e unidades dos CEUs paulistanos, projeto exitoso da SPcine/gestão Haddad, a expectativa pelo filme ficou grande e, com isso, muitas salas de cinema estão exibindo o Lua pelo país.

*Marcia Paraiso é diretora e roteirista. É sócia da produtora Plural Filmes – com sede no Rio e em Florianópolis e Lua em Sagitário é seu primeiro longa de ficção, em exibição nos cinemas

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