Cultura

A última canção

Que música escolher para a cerimônia do adeus?

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Nunca poderia imaginar que numa ensolarada tarde de sábado, ficaria frente a frente com aquela mulher. Uma mulher de meia idade, morena, forte e decidida, que me perguntou:

– Que música o senhor vai querer?

Eu trazia Vivaldi na sacola de pano. Allegro Pastorale, Adagio Molto, o Concerto Número 2 em Sol Menor e um Allegro non Molto. Vivaldi estava ali porque o meu sogro havia pedido música clássica na sua cerimônia do adeus.

A senhora nos avisou que tínhamos direito a dez minutos de música para nos despedirmos do Eduardo.

Um vento frio entrava pela fresta da porta daquela sala do Crematório de Vila Alpina, quando disse a ela que tinha trazido de casa um CD. Mesmo assim, ela me passou uma pasta com várias folhas de papel A4 plastificadas, com uma relação de músicas de despedida.

Logo de cara, na primeira página, dei com o Hino do Corinthians. Comentei com ela que achava estranho alguém ser cremado ao som do hino do timão. Ela comentou:

– É o que mais pedem.


“Salve o Corinthians
O campeão dos campeões
Eternamente dentro dos nossos
corações
Salve o Corinthians de tradições e glórias mil
Tu és orgulho
Dos desportistas do Brasil”

Lembrei que meu sogro era corintiano roxo, ao ponto de não ter mais coração para ver na TV as grandes decisões. Preferia saber o resultado depois do jogo, para evitar fortes emoções. Mas, mesmo assim, para satisfazer o seu último desejo, insisti em Vivaldi ao invés do hino.

Curioso que sou, dei uma espiadinha no repertório que ofereciam naquela pasta já meio surrada de tão manuseada pelos parentes e amigos dos mortos. Tinha de tudo. Hinos de todos os times e canções que iam de Roberto a Fábio Junior, passando por Daniel, Chitãozinho e Xororó.

Achei curioso alguém querer ir embora desse mundo de meu Deus ao som de “Dois pra lá, dois pra cá”, por exemplo.

“Sentindo o frio em minha alma
Te convidei pra dançar
A tua voz me acalmava
São dois pra lá, dois pra cá”.

Daquele repertório imenso, a música que mais me chamou a atenção foi “Alô, Marciano”, de Rita Lee. Pensei cá com os meus botões: Quem deseja ir embora desse mundo ao som de Rita Lee?

“Alô Alô marciano
Aqui quem fala é da terra
Pra variar estamos em guerra
Você não imagina a loucura
O ser humano tá a maior fissura
Porque tá cada vez mais down the hight society.”

Despedimos do Eduardo ao som das Quatro Estações e quando sai de lá, sai decidido a escolher a música para minha cerimonia do adeus. Primeiro, serão cinco minutos de Devendra Banhart cantando “Cristóbal”:

“Ropa rota
Negra gota
Yegua vieja
Lluvia dulce
Me acompanha
Por la noche
Hasta la manana
Hay um mundo más allá
Otro mundo más allá”

Depois, cinco minutos de Ronnie Von cantando “A Máquina Voadora”.

“Quero todo universo sem fim
As alturas vou subir
Vejo o espaço acima de mim
E por ele vou sumir
Vou vagar em pleno ar
Vou voar
Vou voar
Em meu brilhante pássaro de prata
Vou navegar pelas nuvens soltas
Leve para o alto
Toda minha vida
Meu aeroplano.”

Acho que vai ter gente achando Ronnie Von meio cafona cantando na minha despedida, mas faz mal não, eu já não vou estar mais aqui mesmo.


*O cronista sai de férias em busca de novas histórias, voltando ao encontro de vocês aqui, no dia  9 de janeiro

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