Cultura

Meu caro amigo

Qual é a importância das cartas?

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Essa semana, quatro universitários – a Kainara, a Nathalia, o Luiz Fernando e o Oliver – passaram uma tarde inteira na minha casa, gravando. Estudantes de Jornalismo, eles estão fazendo um TCC sobre a importância das cartas e vieram pedir ajuda a um velho homem de imprensa e das letras.

O encontro foi ótimo. Vieram pra passar uma hora e só foram embora quando o sol já tinha se posto. Isso porque não quiseram aceitar o Nespresso que ofereci a eles. Se tivessem aceito, o papo rolaria mais umas boas duas horas.

Remexendo meu baú de cartas, achei uma, talvez a última que escrevi, assim que voltei para o Brasil depois de um longo inverno. Ela foi escrita para um amigo de lutas que ficou em Paris e só está aqui porque voltou com o carimbo destinatário não encontrado.

Ela dizia o seguinte:

Triste Horizonte, fevereiro de 1980

Meu caro Darci, me arvoro a escrever essas mal traçadas linhas para que nada escape aos meus olhos e reflita imediatamente ai. A terra brasileira é fértil e verdejante, tudo que aqui se planta cresce e floresce. Se eu deixei Paris ao som do Nunsexmonkrock, de Nina Hagen, cheguei aqui ouvindo Cajuína e me perguntando: “Existirmos, a que será que se destina?” De cara, fiquei com muito medo de atravessar a Prado Junior. Brasílias, Variantes, Opalas e Polaras passam em alta velocidade não respeitam os pedestres, que também circulam feito baratas tontas, atravessando fora das faixas destinadas a eles.

Não vi Mirinda Morango nas vitrines dos balcões dos bares da Cidade Maravilhosa, mas vi, sim, o chiclete Ping-Pong que continua com os sabores tutti-frutti e hortelã. As mulheres andam praticamente nuas nas ruas. Saias curtíssimas, mini-shorts e tops minúsculos. No Rio, aqueles cubículos nas esquinas continuam vendendo uma mistura de frutas batida no liquidificador que chamam de vitamina. Não é demais você chegar no balcão do boteco e pedir uma vitamina? Na Savassi não existe mais o Bar Grapette, no lugar ergueram um arranha-céu. Cheguei a duvidar que ali, naquele lugar, um dia houve um Bar Grapette, onde bebi o meu primeiro conhaque de alcatrão São João da Barra, minha primeira Brahma Chopp.

A Padaria Savassi também não há mais, o Posto Fraternia não há mais e a Savassi é apenas um retrato na parede. Ontem fui ao Mercado Central, uma festa. Vi um carregador comendo jiló à milanesa de tira-gosto. (lembra da palavra tira-gosto?) e bebendo uma Malt 90, uma cerveja aguada que só ela. Na capa da Veja a Rússia invadindo o Afeganistão. Mas o sonho não acabou. As padarias estão cheias deles e os Sonhos de Valsa ainda são embalados em papel de seda rosa shocking.

Conheci todos os meus dezesseis sobrinhos de uma só vez. Ainda não consigo distinguir quem é quem. Meus filhotes estão deslumbrados com tudo isso, principalmente com a liberdade de andar sem camisa e pés descalços. Eles nunca tinham pisado no chão de cimento de um quintal nem tomado banho de mangueira. Ficam assustados ao ver como as pessoas aqui se abraçam e se beijam. A moda no Brasil é o telefone sem fio.

As casa mais grã-finas, todas tem. Caro Darci, cá estou eu no país da bala Chita, da paçoca Amor e do Supra-Sumo. Cá estou eu no país do Guaraná Caçula, do Saci Pererê, da Bianca e da Sabrina. Cá estou eu no país das novelas, dos biscoitos Piraquê, do lanchinho Mabel e dos bombons Garoto. Cá estou eu no país da Dona Benta, da coleção Disquinho e do Vigilante Rodoviário. Quando o carnaval passar vou-me embora para São Paulo.

Vou no rabo de um foguete tentar a vida por lá. Conhecer a cidade, procurar emprego. “Aqui na terra estão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock and roll. Uns dias chove, noutros dias bate sol”. Sou apenas um desempregado que não vê a hora de sentar numa Remington e escrever uma grande reportagem, quem sabe um livro chamado “Afinal, o que viemos fazer em Paris?” Abraços saudosos.

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