Cultura

O dia a dia de George Orwell

Ao reunir cartas do escritor a amigos, parentes e editores, livro ajuda a compreender universo cotidiano e transformações biográficas do autor de “1984”

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Os fãs de Orwell que esperam encontrar no recém-lançado George Orwell – Uma Vida em Cartas (Companhia das Letras) engajamento e debate político que pautaram a obra literária do autor de Dias na Birmânia e clássicos como A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1949) podem se decepcionar. O livro de 536 páginas, que reúne dezenas de cartas enviadas a amigos, editores e parentes, mostram como o autor nascido na Índia em 1903 era capaz de discorrer sobre assuntos triviais do seu dia a dia.

As cartas foram transcritas com os erros de ortografia do autor, o que confere à obra um caráter mais pessoal e menos crítico de Orwell, como revelam muitas dos textos endereçados à sua mãe, Ida. “Sou o terceiro em aritmática [sic]. Está muito nublado hoje e não paresse [sic] que vá ficar muito quente”.

Ao lado das impressões cotidianas configuram descobertas recentes do autor, em um universo que vai de livros recentemente lidos a hábitos de seus vizinhos. “Você leu alguma coisa interessante ultimamente? Eu li pela primeira vez o Fausto de Marlowe e achei-o podre, também um pequeno livro sórdido sobre Shakespeare tentando provar que Hamlet = Conde de Essex, também uma publicação chamada The Enemy (…)”, conta antes de completar com algumas pílulas sobre trabalho na carta a Eleanor Jaques, de 14 de junho de 1932. “A sra. Carr enviou-me dois livros de apologética católica, e tive muito prazer em resenhar um deles para uma nova publicação chamada New English Weekly. Foi a primeira vez que pude baixar o cacete em um R.C. profissional.”

Como lembra o prefácio do livro, apesar de até agora terem sido descobertas 1.700 de suas cartas, biógrafos e editores do filho de burocrata da administração do Império Britânico dizem que o autor escreveu muito mais. A produção massiva do autor é acompanhada de um volume de detalhes que mostram como elementos aparentemente banais não passam despercebidos pelo autor. “Escrevo como prometi, mas não posso garantir uma carta coerente, pois uma mulher no andar de baixo está tornando a casa inabitável tocando canções religiosas no piano, o que, em combinação com a chuva lá fora e um cachorro latindo em algum lugar na rua, está me qualificando rapidamente para um hospício”, escreveu à amiga Brenda Salked, para quem conta em outra oportunidade a descoberta da receita de um prato de rim de boi com cogumelos e tomate.

Literatura. Na coletânea capaz de contextualizar os principais processos do autor no ambiente doméstico e profissional, o livro tem como ponto alto a relação de Orwell com outros escritores, como o norte-americano Henry Miller, um dos nomes mais influentes da geração beatnik. “Gostei de Trópico de Câncer especialmente por três coisas, em primeiro lugar uma qualidade rítmica peculiar em seu inglês, em segundo lugar o fato de que você lidou com fatos bem conhecidos de todos, mas nunca mencionados em letra de forma (por exemplo, quando o sujeito deve fazer amor com a mulher, mas está morrendo de vontade mijar ao mesmo tempo) (…)”, aponta na correspondência antes de assinar como Eric Blair, seu nome quase sempre mascarado pelo pseudônimo George Orwell.

Apesar da ausência de seu engajamento político, a obra funciona como documento histórico ao trazer um valioso material para o leitor compreender o desenrolar de acontecimentos biográficos, como sua participação na Guerra Civil Espanhola entre as fileiras da milícia comunista e os padecimentos decorrentes da tuberculose, que levou à sua morte em 1950.

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